
A abstinência alcoólica é uma condição clínica que pode surgir durante a internação hospitalar. Neste artigo, discutiremos a apresentação clínica, os diagnósticos diferenciais e o seu tratamento.
1ª Clinicagem: Apresentação Clínica e Diagnóstico
O diagnóstico da abstinência alcoólica é realizado com base nos critérios do quinto Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-V).
Para confirmá-lo, é necessário que tenha ocorrido uma redução ou cessação do consumo prolongado de álcool, além de pelo menos dois dos seguintes sintomas:
- tremores nas mãos,
- náuseas ou vômitos,
- hiperatividade autonômica (exemplo: taquicardia, sudorese),
- insônia,
- agitação psicomotora,
- ansiedade,
- alucinações ou ilusões transitórias (visuais, auditivas ou sensoriais),
- convulsões tônico-clônicas generalizadas.
Classificação pelo DSM-V
Abstinência Leve | Os sintomas começam entre 6 e 36 horas após a última ingestão de álcool, com quadros leves de insônia, ansiedade moderada, taquicardia e sudorese. Geralmente, desaparecem em 1 a 2 dias. |
Abstinência Moderada | Ocorre cerca de 12 a 24 horas após a última ingestão de álcool, com alucinações visuais, táteis e auditivas. A condição tende a se resolver em até 24 horas com tratamento adequado. |
Abstinência Severa | Manifesta-se com convulsões ou Delirium Tremens. As convulsões podem ocorrer entre 6 a 48 horas após a última ingestão, sendo classicamente tônico-clônicas generalizadas e múltiplas nas primeiras 6 horas. O Delirium Tremens, a forma mais grave, surge entre 72 e 92 horas após a última ingestão, com confusão, desorientação e alucinações acompanhadas de hiperatividade autonômica. |
As complicações podem incluir pneumonia aspirativa, arritmias, infarto agudo do miocárdio e distúrbios hidroeletrolíticos graves, podendo levar ao óbito.
2ª Clinicagem: Diagnósticos Diferenciais
Os sintomas da abstinência alcoólica são inespecíficos e podem se assemelhar a outras condições.
É essencial considerar o tempo de início para um diagnóstico preciso.
- Hiperatividade autonômica: Semelhança com intoxicação por substâncias simpaticomiméticas (cocaína, anfetaminas).
- Alucinações: Diferenciar de patologias psiquiátricas, na abstinência a orientação e atenção do paciente permanecem preservadas.
- Convulsões: Excluir hipoglicemia, hiponatremia ou uso de medicamentos. As convulsões da abstinência são breves e, geralmente, não evoluem para status epiléptico.
- Delirium Tremens: Atenção e consciência preservados. Não costuma ocorrer nas primeiras 48 horas. Diagnóstico diferencial com sepse ou síndrome coronariana aguda, especialmente se houver febre, sudorese e alterações de pressão arterial.
3ª Clinicagem: Tratamento no Contexto Hospitalar
O tratamento divide-se em dois cenários:
Risco de abstinência alcoólica
Para pacientes internados por outros motivos, mas com risco de abstinência alcoólica, recomenda-se o uso do escore PAWSS (Prediction of Alcohol Withdrawal Severity Scale).
Se o escore for ≥ 4, há alta probabilidade de desenvolver quadro grave, sendo indicado tratamento profilático com Clordiazepóxido 25 a 100 mg a cada 6 horas no primeiro dia, reduzindo a dose para 25 a 50 nos próximos dois dias.
Síndrome de abstinência já instalada
Nesse cenário, o paciente apresenta sintomas e o manejo inicial envolve a avaliação ABCDE, monitoramento contínuo de sinais vitais e busca de disfunções orgânicas.
A gravidade deve ser avaliada pelo escore CIWA-Ar, com indicação de início de benzodiazepínicos em pacientes com escore superior a 8.
Nestes casos, Diazepam e Lorazepam são os fármacos de primeira linha.
Delirium Tremens Refratário
Por definição, trata-se do uso de mais de 50 mg de Diazepam ou 100 mg de Lorazepam durante a primeira hora de tratamento, ou 200 mg de diazepam durante as primeiras quatro horas.
Nesse caso, é necessário associar Fenobarbital 130 - 260 mg EV e manejar o paciente na UTI.
Um ponto importante é que a fenitoína, medicamento utilizado em quadros refratários de crise convulsiva, não demonstrou eficácia no contexto de abstinência alcoólica.
Terapia Adjuvante
Pacientes com abstinência alcoólica têm risco de desenvolver Encefalopatia de Wernicke, justificando o uso profilático de Tiamina.
A hidratação e a nutrição devem ser otimizadas devido ao risco de desidratação e desnutrição.
Após 24 horas, o tratamento pode ser transicionado para a via oral conforme o controle dos sintomas.
Para saber mais
Ouça nosso episódio sobre o tema:
Referências
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