Atualização KDIGO 2022 de Manejo de Diabetes na Doença Renal Crônica

Criado em: 30 de Janeiro de 2023 Autor: Joanne Alves Moreira

Em novembro de 2022, o Kidney Disease Improving Global Outcomes (KDIGO) publicou uma diretriz sobre manejo de diabetes mellitus em pessoas com doença renal crônica [1]. Dividimos os principais pontos práticos dessa atualização em três categorias: medicações de primeira linha, controle glicêmico e controle de proteinúria.

Gliflozinas - inibidores da SGLT2

As gliflozinas fazem parte da primeira linha de terapia de diabetes mellitus tipo 2 (DM2) e doença renal crônica (DRC). A diretriz recomenda o uso de gliflozinas no tratamento de pacientes com DM2, DRC e taxa de filtração glomerular ≥ 20 mL/min/1.73m² (recomendação 1A). Essa recomendação é robusta devido ao grande número de estudos de pessoas com DM2 mostrando efeitos benéficos renais e principalmente cardiovasculares com essas drogas.

Os iSGLT2 são seguros e beneficiam pacientes com DRC mesmo sem DM2. O risco de hipoglicemia é baixo, porém aumenta quando a gliflozina é associada a sulfonilureias e insulina.

No início do tratamento com gliflozinas pode ocorrer uma queda reversível da taxa de filtração glomerular (TFG) [2]. Geralmente não é necessário interromper a medicação [3].

A intensidade da queda inicial na TFG que deve ser tolerada não está bem definida. Análises post hoc dos estudos EMPA-REG OUTCOMES e CREDENCE sugeriram que uma queda na TFG ≥ 10% não foi associada ao aumento do risco ou diminuição dos benefícios da empagliflozina e canagliflozina, respectivamente, em comparação com uma queda < 10% [4, 5].

A diretriz orienta tolerar uma queda aguda da TFG ≤ 30% com o início da terapia. Se houver uma queda da TFG > 30%, deve-se considerar três pontos antes da retirada do medicamento:

  • Avaliar a volemia, já que a introdução do iSGLT2 pode causar hipovolemia por efeito diurético
  • Descontinuar qualquer agente nefrotóxico
  • Investigar etiologias alternativas para a lesão renal

O KDIGO orienta que após a introdução de um iSGLT2, é razoável mantê-lo mesmo que a TFG caia para < 20 mL/min/1.73m², a menos que a medicação não seja tolerada ou seja iniciada terapia de substituição renal (TSR) - diálise ou transplante [5, 6].

Existem dois grupos nos quais as gliflozinas ainda não possuem eficácia e segurança estabelecidas: pessoas com transplante renal e pessoas com DM1.

Pacientes com transplante renal podem se beneficiar do tratamento, mas não foram adequadamente estudados. Por estarem imunossuprimidos e os iSGLT2 aumentarem o risco de infecções urinárias, a recomendação não se aplica a este grupo.

Em pacientes com DM1, o Food and Drug Administration (FDA) não aprovou o uso. Em 2019, a comissão europeia aprovou o uso de dapagliflozina e sotagliflozina no DM1 como coadjuvantes à insulina. Entretanto, a indústria farmacêutica responsável pela produção da dapagliflozina retirou sua indicação em 2021, citando preocupações com cetoacidose diabética induzida pela medicação.

Tabela 1
Inibidores de SGLT2 com benefício cardiovascular e renal e respectivas doses
Inibidores de SGLT2 com benefício cardiovascular e renal e respectivas doses

As doses das medicações e as orientações para ajuste conforme a TFG estão disponíveis na tabela 1.

Você pode ler mais sobre o tema no tópico "Gliflozinas (inibidores da SGLT2)".

Metformina

A metformina é eficaz na redução de hemoglobina glicada (HbA1c) em DM2, tendo baixo risco para hipoglicemia na população geral e nos pacientes com DRC. O uso em monoterapia consegue reduzir aproximadamente 1,5% na HbA1c.

O documento recomenda o uso de metformina em pacientes com DM2 e DRC com TFG ≥ 30 mL/min/1.73m² (recomendação 1B). Não há evidências sobre a segurança do uso quando a TFG < 30 mL/min/1.73m² ou em pessoas em TSR, devendo-se suspender a medicação nessas situações.

Fluxograma 1
Ajuste de metformina conforme função renal
Ajuste de metformina conforme função renal

A dose de metformina deve ser reduzida quando a TFG está entre 30 44 mL/min/1.73m² , iniciando-se metade da dose preconizada e aumentando até metade da dose máxima (1000mg/dia). Quando a TFG está entre 45-59 mL/min/1.73m², a dose deve ser reduzida na presença de condições que predispõem à hipoperfusão. O fluxograma 1 traz a sugestão do KDIGO para acompanhamento desses pacientes.

Sintomas gastrointestinais podem ocorrer em até 25% dos pacientes em uso da apresentação de liberação imediata. Em pacientes com efeitos colaterais significativos, deve-se considerar a troca para metformina de liberação prolongada e monitorar a melhora dos sintomas. As formulações e doses estão disponíveis na tabela 2.

Tabela 2
Apresentações da metformina, doses e ajustes
Apresentações da metformina, doses e ajustes

O KDIGO também orienta monitorizar sinais de deficiência de vitamina B12 após 4 anos de uso, pois a medicação interfere na absorção intestinal dessa vitamina. No entanto, as consequências clínicas são incomuns e a diretriz não recomenda a reposição empírica.

Falamos mais sobre a indicação e cuidados da prescrição de metformina na população em geral no TdC em Bolus - Metformina, o que você precisa saber.

Controle glicêmico: alvos terapêuticos

O KDIGO recomenda usar a HbA1c para monitorizar o controle glicêmico dos pacientes com DM e DRC (recomendação 1C). A HbA1c é um produto final da glicosilação da hemoglobina, refletindo a glicemia de longo prazo. Apesar dos diversos confundidores no paciente com DRC - por exemplo anemia, transfusões, acidose metabólica - a diretriz avalia como prudente o uso desse parâmetro nos pacientes com DM1 ou DM2 com DRC.

A acurácia da HbA1c diminui com a DRC avançada (estágios 4 e 5), particularmente entre os pacientes em TSR [7, 8].

A longo prazo, é razoável dosar a HbA1c duas vezes por ano para pacientes com DM. O exame pode ser realizado até quatro vezes por ano se a meta glicêmica não for atingida ou após mudança no tratamento.

A diretriz também recomenda uma meta individualizada de HbA1c, variando entre menor que 6,5% a 8% em pacientes com diabetes e DRC não dialítica (recomendação 1C). A definição dessa meta é individualizada e leva em consideração múltiplos fatores: preferências do paciente, gravidade da DRC, presença de comorbidades, expectativa de vida, risco de hipoglicemia, escolha do antidiabético, recursos disponíveis e presença de um sistema de apoio.

As metas de HbA1c ≤ 6% são associadas a maior risco de hipoglicemia, aumento da mortalidade em pacientes com DM2 e maior risco cardiovascular, não sendo recomendadas [9].

Fluxograma 2
Tratamento de diabetes mellitus tipo 2 em pacientes com doença renal crônica
Tratamento de diabetes mellitus tipo 2 em pacientes com doença renal crônica

O manejo glicêmico para pacientes com DM2 e DRC deve incluir mudança do estilo de vida. A maioria dos pacientes com TFG ≥ 30 mL/min/1.73m² já deve estar em uso de metformina e um iSGLT2, por serem a primeira linha. Outra medicação pode ser adicionada para otimizar o controle glicêmico (fluxograma 2), sendo os análogos do receptor do GLP-1 (arGLP-1) a escolha preferencial.

Tabela 3
Ajustes de doses para TFG < 45mL/min/1.73m² segundo American Diabetes Association
Ajustes de doses para TFG < 45mL/min/1.73m² segundo American Diabetes Association

Em pacientes com TFG < 30 ml/min/1.73m², incluindo aqueles em TSR, o manejo é mais desafiador devido às restrições ao uso de drogas (veja o tabela 3) e à falta de ensaios clínicos. Para o DM1, a insulina continua a ser a única terapia aprovada, mas as doses devem ser ajustadas devido a redução do clearance de insulina.

Agonistas do receptor de GLP-1

O glucagon-like peptide-1 (GLP-1) é uma incretina secretada pelo intestino após a ingestão de glicose. No pâncreas, ele estimula a secreção de insulina glicose-dependente e suprime o glucagon. O GLP-1 também retarda o esvaziamento gástrico e reduz a estimulação do apetite, facilitando a perda de peso. Estes efeitos são reduzidos ou ausentes em pacientes com diabetes.

Os agonistas do receptor de GLP-1 (arGLP-1) demonstraram redução de eventos cardiovasculares em pacientes com DM2 e HbA1c > 7% com alto risco cardiovascular, além de reduzirem albuminúria e a velocidade de progressão da DRC [10-13].

O KDIGO recomenda o uso de arGLP-1 em pacientes com DM2 e DRC que não alcançaram a meta glicêmica individualizada apesar do uso de metformina e gliflozinas ou que não podem usar esses medicamentos (recomendação 1B).

Para reduzir os efeitos adversos gastrointestinais, deve-se iniciar com doses baixas e titular lentamente. As medicações e as doses estão disponíveis na tabela 4.

Tabela 4
Agonistas do receptor de GLP-1 e ajuste de dose conforme taxa de filtração glomerular (TFG)
Agonistas do receptor de GLP-1 e ajuste de dose conforme taxa de filtração glomerular (TFG)

O risco de hipoglicemia é baixo com os arGLP-1 em monoterapia, mas o risco aumenta quando associados a sulfonilureias ou insulina. As doses de sulfonilureia e/ou insulina podem precisar de redução.

Controle inicial de albuminúria

Tabela 5
Categorias de albuminúria
Categorias de albuminúria

Albuminúria está associada a maior risco de progressão da nefropatia e desenvolvimento de falência renal em pacientes com DRC e DM. Os estudos que comprovaram o benefício do uso de bloqueador do receptor de angiotensina II (BRA) na redução do risco de progressão da DRC em pacientes com DM2 e albuminúria moderada (estágio A2 - veja tabela 5) foram o IRMA-2 e INNOVATION e nos pacientes com DM2 e albuminúria maior que 1g/dia (estágio A3) foram o IDNT e RENAAL [14-17].

Uma revisão da Cochrane encontrou que inibidores da enzima conversora de angiotensina (iECA) ou BRA reduziram a progressão da DRC em pacientes com DM [18]. Os marcadores utilizados para avaliar progressão foram ascensão e remissão da albuminúria, aumento da creatinina sérica e evolução para DRC em estágio final.

O KDIGO recomenda iniciar iECA ou BRA em pacientes com DM, hipertensão (HAS) e albuminúria. Deve-se titular as doses das medicações até a dose máxima tolerada (recomendação 1B). Essa recomendação aplica-se aos pacientes com DM1 e DM2, exceto aqueles em TSR.

Os estudos citados não recrutaram uma população estatisticamente significativa de pessoas normotensas. Mesmo assim, a diretriz considera que o uso de iECA ou BRA pode ser benéfico em pacientes com DM e albuminúria na ausência de HAS. Há uma forte correlação entre a gravidade da albuminúria e o risco de DRC nesta população e o bloqueio do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) reduz a gravidade de albuminúria.

Pacientes com DM e HAS têm menor risco de progressão da DRC quando a excreção de albumina urinária é normal (< 30 mg/g). As evidências existentes não demonstraram benefício da inibição do SRAA para a progressão da DRC em pacientes sem albuminúria.

Tabela 6
IECA e BRA na doença renal crônica (DRC)
IECA e BRA na doença renal crônica (DRC)

Não há superioridade entre as classes e a escolha dependerá de outros fatores, incluindo preferências dos pacientes, custo, disponibilidade e efeitos colaterais. As drogas disponíveis, doses e ajustes estão disponíveis na tabela 6.

Fluxograma 3
Ajuste de dose e efeitos adversos durante uso de IECA ou BRA
Ajuste de dose e efeitos adversos durante uso de IECA ou BRA

Deve-se monitorar o valores de pressão arterial, creatinina e potássio séricos 2 a 4 semanas após introdução de iECA ou BRA e os ajustes podem ser feitos conforme as orientações do fluxograma 3.

Controle avançado de albuminúria

O KDIGO também recomenda o uso de antagonista do receptor mineralocorticoide (ARM) em pacientes com DM2, TFG ≥ 25 mL/min/1.73m², potássio sérico normal e albuminúria ≥ 30 mg/g mesmo com dose máxima tolerada de IECA ou BRA (recomendação 2A).

Estudos experimentais sugerem que o bloqueio do SRAA leva à supressão incompleta dos níveis séricos de aldosterona (fenômeno de fuga da aldosterona), devendo-se considerar tratamentos adicionais para diminuir a albuminúria residual e atenuar a fibrose renal [19].

A espironolactona e a eplerenona têm benefício cardiovascular estabelecido em pacientes com insuficiência cardíaca e HAS refratária. Contudo, o uso dessas medicações em pacientes com DRC aumentou em 2 a 3 vezes o risco de hipercalemia e dobrou o risco de injúria renal.

A finerenona, um novo ARM, é mais seletiva aos receptores mineralocorticoides com redução similar de albuminúria e baixo risco de hipercalemia. Os estudos FIDELIO-DKD e FIGARO-DKD mostraram redução de risco renal e cardiovascular com uso dessa medicação [20, 21]. Infelizmente, a finerenona ainda não está disponível no Brasil.

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