Atualização KDIGO 2022 de Manejo de Diabetes na Doença Renal Crônica
Em novembro de 2022, o Kidney Disease Improving Global Outcomes (KDIGO) publicou uma diretriz sobre manejo de diabetes mellitus em pessoas com doença renal crônica [1]. Dividimos os principais pontos práticos dessa atualização em três categorias: medicações de primeira linha, controle glicêmico e controle de proteinúria.
Gliflozinas - inibidores da SGLT2
As gliflozinas fazem parte da primeira linha de terapia de diabetes mellitus tipo 2 (DM2) e doença renal crônica (DRC). A diretriz recomenda o uso de gliflozinas no tratamento de pacientes com DM2, DRC e taxa de filtração glomerular ≥ 20 mL/min/1.73m² (recomendação 1A). Essa recomendação é robusta devido ao grande número de estudos de pessoas com DM2 mostrando efeitos benéficos renais e principalmente cardiovasculares com essas drogas.
Os iSGLT2 são seguros e beneficiam pacientes com DRC mesmo sem DM2. O risco de hipoglicemia é baixo, porém aumenta quando a gliflozina é associada a sulfonilureias e insulina.
No início do tratamento com gliflozinas pode ocorrer uma queda reversível da taxa de filtração glomerular (TFG) [2]. Geralmente não é necessário interromper a medicação [3].
A intensidade da queda inicial na TFG que deve ser tolerada não está bem definida. Análises post hoc dos estudos EMPA-REG OUTCOMES e CREDENCE sugeriram que uma queda na TFG ≥ 10% não foi associada ao aumento do risco ou diminuição dos benefícios da empagliflozina e canagliflozina, respectivamente, em comparação com uma queda < 10% [4, 5].
A diretriz orienta tolerar uma queda aguda da TFG ≤ 30% com o início da terapia. Se houver uma queda da TFG > 30%, deve-se considerar três pontos antes da retirada do medicamento:
- Avaliar a volemia, já que a introdução do iSGLT2 pode causar hipovolemia por efeito diurético
- Descontinuar qualquer agente nefrotóxico
- Investigar etiologias alternativas para a lesão renal
O KDIGO orienta que após a introdução de um iSGLT2, é razoável mantê-lo mesmo que a TFG caia para < 20 mL/min/1.73m², a menos que a medicação não seja tolerada ou seja iniciada terapia de substituição renal (TSR) - diálise ou transplante [5, 6].
Existem dois grupos nos quais as gliflozinas ainda não possuem eficácia e segurança estabelecidas: pessoas com transplante renal e pessoas com DM1.
Pacientes com transplante renal podem se beneficiar do tratamento, mas não foram adequadamente estudados. Por estarem imunossuprimidos e os iSGLT2 aumentarem o risco de infecções urinárias, a recomendação não se aplica a este grupo.
Em pacientes com DM1, o Food and Drug Administration (FDA) não aprovou o uso. Em 2019, a comissão europeia aprovou o uso de dapagliflozina e sotagliflozina no DM1 como coadjuvantes à insulina. Entretanto, a indústria farmacêutica responsável pela produção da dapagliflozina retirou sua indicação em 2021, citando preocupações com cetoacidose diabética induzida pela medicação.
As doses das medicações e as orientações para ajuste conforme a TFG estão disponíveis na tabela 1.
Você pode ler mais sobre o tema no tópico "Gliflozinas (inibidores da SGLT2)".
Metformina
A metformina é eficaz na redução de hemoglobina glicada (HbA1c) em DM2, tendo baixo risco para hipoglicemia na população geral e nos pacientes com DRC. O uso em monoterapia consegue reduzir aproximadamente 1,5% na HbA1c.
O documento recomenda o uso de metformina em pacientes com DM2 e DRC com TFG ≥ 30 mL/min/1.73m² (recomendação 1B). Não há evidências sobre a segurança do uso quando a TFG < 30 mL/min/1.73m² ou em pessoas em TSR, devendo-se suspender a medicação nessas situações.
A dose de metformina deve ser reduzida quando a TFG está entre 30 44 mL/min/1.73m² , iniciando-se metade da dose preconizada e aumentando até metade da dose máxima (1000mg/dia). Quando a TFG está entre 45-59 mL/min/1.73m², a dose deve ser reduzida na presença de condições que predispõem à hipoperfusão. O fluxograma 1 traz a sugestão do KDIGO para acompanhamento desses pacientes.
Sintomas gastrointestinais podem ocorrer em até 25% dos pacientes em uso da apresentação de liberação imediata. Em pacientes com efeitos colaterais significativos, deve-se considerar a troca para metformina de liberação prolongada e monitorar a melhora dos sintomas. As formulações e doses estão disponíveis na tabela 2.
O KDIGO também orienta monitorizar sinais de deficiência de vitamina B12 após 4 anos de uso, pois a medicação interfere na absorção intestinal dessa vitamina. No entanto, as consequências clínicas são incomuns e a diretriz não recomenda a reposição empírica.
Falamos mais sobre a indicação e cuidados da prescrição de metformina na população em geral no TdC em Bolus - Metformina, o que você precisa saber.
Controle glicêmico: alvos terapêuticos
O KDIGO recomenda usar a HbA1c para monitorizar o controle glicêmico dos pacientes com DM e DRC (recomendação 1C). A HbA1c é um produto final da glicosilação da hemoglobina, refletindo a glicemia de longo prazo. Apesar dos diversos confundidores no paciente com DRC - por exemplo anemia, transfusões, acidose metabólica - a diretriz avalia como prudente o uso desse parâmetro nos pacientes com DM1 ou DM2 com DRC.
A acurácia da HbA1c diminui com a DRC avançada (estágios 4 e 5), particularmente entre os pacientes em TSR [7, 8].
A longo prazo, é razoável dosar a HbA1c duas vezes por ano para pacientes com DM. O exame pode ser realizado até quatro vezes por ano se a meta glicêmica não for atingida ou após mudança no tratamento.
A diretriz também recomenda uma meta individualizada de HbA1c, variando entre menor que 6,5% a 8% em pacientes com diabetes e DRC não dialítica (recomendação 1C). A definição dessa meta é individualizada e leva em consideração múltiplos fatores: preferências do paciente, gravidade da DRC, presença de comorbidades, expectativa de vida, risco de hipoglicemia, escolha do antidiabético, recursos disponíveis e presença de um sistema de apoio.
As metas de HbA1c ≤ 6% são associadas a maior risco de hipoglicemia, aumento da mortalidade em pacientes com DM2 e maior risco cardiovascular, não sendo recomendadas [9].
O manejo glicêmico para pacientes com DM2 e DRC deve incluir mudança do estilo de vida. A maioria dos pacientes com TFG ≥ 30 mL/min/1.73m² já deve estar em uso de metformina e um iSGLT2, por serem a primeira linha. Outra medicação pode ser adicionada para otimizar o controle glicêmico (fluxograma 2), sendo os análogos do receptor do GLP-1 (arGLP-1) a escolha preferencial.
Em pacientes com TFG < 30 ml/min/1.73m², incluindo aqueles em TSR, o manejo é mais desafiador devido às restrições ao uso de drogas (veja o tabela 3) e à falta de ensaios clínicos. Para o DM1, a insulina continua a ser a única terapia aprovada, mas as doses devem ser ajustadas devido a redução do clearance de insulina.
Agonistas do receptor de GLP-1
O glucagon-like peptide-1 (GLP-1) é uma incretina secretada pelo intestino após a ingestão de glicose. No pâncreas, ele estimula a secreção de insulina glicose-dependente e suprime o glucagon. O GLP-1 também retarda o esvaziamento gástrico e reduz a estimulação do apetite, facilitando a perda de peso. Estes efeitos são reduzidos ou ausentes em pacientes com diabetes.
Os agonistas do receptor de GLP-1 (arGLP-1) demonstraram redução de eventos cardiovasculares em pacientes com DM2 e HbA1c > 7% com alto risco cardiovascular, além de reduzirem albuminúria e a velocidade de progressão da DRC [10-13].
O KDIGO recomenda o uso de arGLP-1 em pacientes com DM2 e DRC que não alcançaram a meta glicêmica individualizada apesar do uso de metformina e gliflozinas ou que não podem usar esses medicamentos (recomendação 1B).
Para reduzir os efeitos adversos gastrointestinais, deve-se iniciar com doses baixas e titular lentamente. As medicações e as doses estão disponíveis na tabela 4.
O risco de hipoglicemia é baixo com os arGLP-1 em monoterapia, mas o risco aumenta quando associados a sulfonilureias ou insulina. As doses de sulfonilureia e/ou insulina podem precisar de redução.
Controle inicial de albuminúria
Albuminúria está associada a maior risco de progressão da nefropatia e desenvolvimento de falência renal em pacientes com DRC e DM. Os estudos que comprovaram o benefício do uso de bloqueador do receptor de angiotensina II (BRA) na redução do risco de progressão da DRC em pacientes com DM2 e albuminúria moderada (estágio A2 - veja tabela 5) foram o IRMA-2 e INNOVATION e nos pacientes com DM2 e albuminúria maior que 1g/dia (estágio A3) foram o IDNT e RENAAL [14-17].
Uma revisão da Cochrane encontrou que inibidores da enzima conversora de angiotensina (iECA) ou BRA reduziram a progressão da DRC em pacientes com DM [18]. Os marcadores utilizados para avaliar progressão foram ascensão e remissão da albuminúria, aumento da creatinina sérica e evolução para DRC em estágio final.
O KDIGO recomenda iniciar iECA ou BRA em pacientes com DM, hipertensão (HAS) e albuminúria. Deve-se titular as doses das medicações até a dose máxima tolerada (recomendação 1B). Essa recomendação aplica-se aos pacientes com DM1 e DM2, exceto aqueles em TSR.
Os estudos citados não recrutaram uma população estatisticamente significativa de pessoas normotensas. Mesmo assim, a diretriz considera que o uso de iECA ou BRA pode ser benéfico em pacientes com DM e albuminúria na ausência de HAS. Há uma forte correlação entre a gravidade da albuminúria e o risco de DRC nesta população e o bloqueio do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) reduz a gravidade de albuminúria.
Pacientes com DM e HAS têm menor risco de progressão da DRC quando a excreção de albumina urinária é normal (< 30 mg/g). As evidências existentes não demonstraram benefício da inibição do SRAA para a progressão da DRC em pacientes sem albuminúria.
Não há superioridade entre as classes e a escolha dependerá de outros fatores, incluindo preferências dos pacientes, custo, disponibilidade e efeitos colaterais. As drogas disponíveis, doses e ajustes estão disponíveis na tabela 6.
Deve-se monitorar o valores de pressão arterial, creatinina e potássio séricos 2 a 4 semanas após introdução de iECA ou BRA e os ajustes podem ser feitos conforme as orientações do fluxograma 3.
Controle avançado de albuminúria
O KDIGO também recomenda o uso de antagonista do receptor mineralocorticoide (ARM) em pacientes com DM2, TFG ≥ 25 mL/min/1.73m², potássio sérico normal e albuminúria ≥ 30 mg/g mesmo com dose máxima tolerada de IECA ou BRA (recomendação 2A).
Estudos experimentais sugerem que o bloqueio do SRAA leva à supressão incompleta dos níveis séricos de aldosterona (fenômeno de fuga da aldosterona), devendo-se considerar tratamentos adicionais para diminuir a albuminúria residual e atenuar a fibrose renal [19].
A espironolactona e a eplerenona têm benefício cardiovascular estabelecido em pacientes com insuficiência cardíaca e HAS refratária. Contudo, o uso dessas medicações em pacientes com DRC aumentou em 2 a 3 vezes o risco de hipercalemia e dobrou o risco de injúria renal.
A finerenona, um novo ARM, é mais seletiva aos receptores mineralocorticoides com redução similar de albuminúria e baixo risco de hipercalemia. Os estudos FIDELIO-DKD e FIGARO-DKD mostraram redução de risco renal e cardiovascular com uso dessa medicação [20, 21]. Infelizmente, a finerenona ainda não está disponível no Brasil.
Aproveite e leia:
Análogos de GLP-1 para Doença Renal Crônica
Os análogos de GLP-1 são medicações desenvolvidas para diabetes mellitus que também demonstraram benefício para o tratamento de obesidade. Em maio de 2024, foi publicado no New England Journal of Medicine o estudo FLOW, avaliando o benefício renal da semaglutida em pacientes portadores de doença renal crônica e diabetes mellitus. Esse tópico revisa os principais achados desse estudo.
Hipoglicemia na Diabetes: Diretriz de Manejo Ambulatorial
A hipoglicemia é um dos principais efeitos adversos no tratamento medicamentoso da diabetes. Em fevereiro de 2024, o Journal of the American Medical Association publicou uma sinopse da diretriz de 2023 da Endocrine Society sobre o manejo de pacientes com diabetes e alto risco de hipoglicemia. Este tópico aborda as principais recomendações desses documentos.
Gliflozinas (inibidores da SGLT2)
As gliflozinas (inibidores da SGLT2) são uma das medicações mais estudadas da última década, com pesquisas mostrando seu benefício em diabetes mellitus tipo 2 (DM2), insuficiência cardíaca e doença renal crônica (DRC). Em maio de 2022, o New England Journal of Medicine (NEJM) lançou uma revisão sobre as gliflozinas no manejo de doenças cardiovasculares e trazemos os principais estudos e indicações aqui.
Tempestade Tireotóxica
A tempestade tireotóxica é uma urgência endocrinológica. Uma parte essencial do tratamento são as tionamidas, medicamentos antitireoidianos. Em abril de 2023, o JAMA Open publicou um estudo comparando duas tionamidas (propiltiouracil e metimazol) na crise tireotóxica. Este tópico revisa o tratamento dessa condição e traz os achados do artigo.
COVID Longo
COVID longo é uma síndrome nova com definição e comportamento ainda incertos. A Nature lançou uma revisão sobre o tema em janeiro de 2023, trazendo ideias e informações interessantes que merecem ser repercutidas aqui no Guia.