Semaglutida para Insuficiência Cardíaca com Fração de Ejeção Preservada

Criado em: 04 de Setembro de 2023 Autor: João Mendes Vasconcelos

O congresso da European Society of Cardiology (ESC) de 2023 trouxe mais um estudo com a semaglutida. Dessa vez, os pesquisadores avaliaram o efeito da droga em pacientes com insuficiência cardíaca de fração de ejeção preservada [1]. Esse tópico traz os resultados do estudo.

Definição de insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada

Insuficiência cardíaca (IC) é descrita pela definição universal de IC como [2]:

"Sinais e/ou sintomas de IC causados por uma alteração cardíaca estrutural/funcional E pelo menos um dos seguintes:

  • Elevação de peptídeo natriurético
  • Evidência objetiva de congestão pulmonar ou sistêmica cardiogênica".

Uma vez que o paciente tem IC, o próximo passo é determinar a fração de ejeção (FE). FE menor que 40% é considerada reduzida; maior que 50% é preservada. IC com FE entre 40% e 50% é chamada de IC com FE levemente reduzida. Este grupo de IC com FE levemente reduzida é heterogêneo, incluindo aqueles com FE reduzida que recuperaram FE e pacientes com FE preservada que perderam FE.

Para diagnosticar IC com fração de ejeção preservada (ICFEP) são necessárias três etapas [3]:

  1. Entrar nos critérios universais de IC
  2. Possuir FE > 50%
  3. O quadro não pode ser atribuído a uma cardiomiopatia subjacente, como cardiomiopatias restritivas, cardiomiopatia hipertrófica, doença valvar, doença pericárdica ou IC de alto débito

Assim, não é todo paciente que entra na definição de IC e tem FE > 50% que recebe o diagnóstico de ICFEP. Exemplo: se um paciente tem FE de 55% e sintomas de IC, mas o quadro se deve a acometimento cardíaco por amiloidose, o diagnóstico é de cardiomiopatia por amiloidose e não ICFEP. O mecanismo exato que leva a ICFEP não é totalmente esclarecido. Estudos epidemiológicos indicam uma atuação combinada de idade avançada, obesidade, hipertensão arterial, diabetes e sedentarismo no desenvolvimento de ICFEP.

A ICFEP já é responsável por 50% ou mais do casos de IC em alguns países. Apesar da prevalência, as opções terapêuticas ainda são limitadas.

Semaglutida

Semaglutida é um medicamento análogo da GLP-1 aprovado para uso em diabetes e obesidade. A medicação está disponível na formulação oral ou subcutânea. A dose para diabetes é de até 14 mg via oral (Rybelsus©) ou 1 mg subcutânea (Ozempic©); a dose para perda de peso é de até 2,4 mg subcutânea (Wegovy©).

A droga reduz eventos cardiovasculares em pacientes com diabetes e aparenta ser capaz de reduzir o risco também em pacientes sem diabetes. Em um anúncio recente da Novo Nordisk, pesquisadores informaram que os resultados do estudo SELECT mostram redução de risco de eventos cardiovasculares em 20% entre pacientes com sobrepeso ou obesidade.

Para mais informações sobre semaglutida, veja o episódio 187: Ozempic/Semaglutide - 4 Clinicagens.

O estudo STEP-HFpEF

O STEP-HFpEF foi um estudo randomizado patrocinado pela indústria, internacional, duplo cego e controlado por placebo [1]. Pesquisadores avaliaram a semaglutida em esquema de dose incremental, com alvo de 2,4 mg por semana via subcutânea versus placebo. Todos os pacientes tinham ICFEP e IMC acima de 30. Foram excluídos aqueles com outras cardiomiopatias ou diabetes. Os desfechos primários foram melhora do escore Kansas City Cardiomyopathy Questionnaire Clinical Summary Score (KCCQ-CSS) e mudança de peso aferidos na semana 52. O KCCQ-CSS é um escore que vai de 0 a 100 e é pontuado através de 23 perguntas, com menos pontos indicando mais sintomas e dependência. O questionário em português pode ser encontrado no estudo do Kansas City Cardiomyopathy Questionnaire.

O estudo incluiu 529 pacientes, com média de idade de 69 anos, sendo 56% mulheres e 96% brancos. Houve diferença significativa favorecendo a semaglutida no desfecho primário, tanto no KCCQ-CSS como na perda de peso. O incremento médio do KCCQ-CSS foi de aproximadamente 8 pontos, favorecendo a semaglutida. Colocando em perspectiva, nos estudos com inibidores da SGLT2, sacubitril/valsartana e espironolactona em população com ICFEP o incremento do KCCQ-CSS foi de 0,5 a 2,3 pontos.

O grupo semaglutida teve aumento da distância caminhada em 6 minutos. Houve também queda mais pronunciada nos níveis de proteína C reativa e NT-proBNP. Eventos adversos foram mais comuns no grupo placebo, especialmente em razão de eventos cardiovasculares.

Apesar dos resultados positivos, o estudo não foi desenhado para avaliar desfechos clínicos como hospitalização ou morte. Apenas 3,6% dos pacientes estavam usando inibidores da SGLT2, uma consequência do período em que o estudo foi feito e o fato de pacientes com diabetes terem sido excluídos.

Alguns podem argumentar que o benefício da semaglutida já era claro antes, uma vez que um paciente com IC e dispneia que perde peso necessariamente vai ter melhor qualidade de vida. Os autores acreditam que a melhora dos biomarcadores aponta para outros mecanismos além da redução da carga física do peso.

O artigo reforça o entendimento da ICFEP como uma doença metabólica. Estudos avaliando eventos clínicos e com acompanhamento mais longo são esperados. Os análogos da GLP-1 se juntam aos inibidores da SGLT2 na terapia da ICFEP.

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Kittleson MM, Panjrath GS, Amancherla K, Davis LL, Deswal A, Dixon DL, Januzzi JL Jr, Yancy CW. 2023 ACC Expert Consensus Decision Pathway on Management of Heart Failure With Preserved Ejection Fraction: A Report of the American College of Cardiology Solution Set Oversight Committee. J Am Coll Cardiol. 2023.