Caso Clínico #15

Criado em: 28 de Dezembro de 2023 Autor: João Mendes Vasconcelos

O caso clínico abaixo é apresentado em partes. O negrito é a descrição do caso, as partes que não estão em negrito são os comentários. Ao final, você encontrará a resolução e os pontos de aprendizagem resumidos.

Mulher de 82 anos procura o pronto socorro por mal estar há cinco dias. Estava em viagem internacional para a Romênia por 18 dias e, no último dia de viagem, teve febre com calafrios sem outros sintomas. Retorna ao Brasil e inicia diarreia sem produtos patológicos por dois dias, menos de cinco episódios por dia. Mantém fadiga intensa desde o dia da febre. Nega náuseas, vômitos, dor abdominal, dispneia e tosse.

Possui dislipidemia, hipotireoidismo e doença do refluxo gastroesofágico. Passou por implante de valva aórtica transcateter (TAVI) em fevereiro de 2021, evoluindo com bloqueio atrioventricular total (BAVT) com necessidade de implante de marca-passo. Utiliza dabigatrana, pitavastatina, bisoprolol, levotiroxina e esomeprazol. Não possui alergias, nunca fez cirurgias ou precisou de hospitalização, exceto pela valvopatia.

Os sinais vitais desse atendimento são pressão arterial 132/70 mmHg com média de 90 mmHg, frequência cardíaca 80 batimentos por minuto, frequência respiratória 16 incursões por minuto, saturação 95%, temperatura axilar 37,2 ºC e peso de 50 kg. Bom estado geral, eupneica, anictérica e normocorada. Orofaringe sem alterações. Ausculta cardíaca sem sopros, bulhas normofonéticas, rítmicas em dois tempos. Ausculta respiratória sem alterações. Abdome com ruídos audíveis, plano, flácido, indolor à palpação, sem massas ou visceromegalias.


Uma abordagem possível para diarreia no pronto socorro envolve responder a quatro perguntas:

  1. Qual é a provável etiologia?
  2. A diarreia é inflamatória ou não?
  3. O paciente tem complicações ou é vulnerável?
  4. Existe algum modificador (viagem, internação, uso recente de antibiótico)?

A primeira pergunta costuma ser desconsiderada, assumindo que todas as diarreias agudas (duração de até duas semanas) são por doenças infecciosas gastrointestinais. De fato, a maioria das diarreias agudas são por gastroenterites virais ou bacterianas, porém doenças não gastrointestinais e não infecciosas também causam diarreias agudas. Exemplos:

  • Doenças infecciosas e não gastrointestinais como dengue, pneumonia, pielonefrite [1, 2]. Por mais que existam sintomas abdominais, qualquer doença inflamatória aguda grave deve incluir no diagnóstico diferencial focos infecciosos fora do trato gastrointestinal.
  • Doenças não infecciosas e gastrointestinais como doença de Crohn, retocolite ulcerativa e colite microscópica. Devem ser consideradas especialmente quando a diarreia se prolonga.
  • Condições não infecciosas e não gastrointestinais, como hipertireoidismo e medicamentos.

A presença de sinais inflamatórios como febre, sangue nas fezes ou diarreia em pequena quantidade com muco interfere na conduta. Esses sinais sugerem colite e diretrizes indicam terapia antimicrobiana empírica nesse contexto [3, 4].

As principais complicações de diarreia aguda são hipovolemia, sepse e complicações secundárias ao processo inflamatório local, como perfuração intestinal, abscessos e megacólon. A maioria dos pacientes com diarreia aguda que estão clinicamente bem não precisam de exames adicionais de laboratório ou imagem para investigar essas condições [5]. Contudo, em pacientes vulneráveis como imunossuprimidos, idosos, pessoas com múltiplas comorbidades ou disfunções orgânicas crônicas (IC, DRC, cirrose) é razoável ter um limiar menor para solicitar exames complementares mesmo quando o paciente está bem.

Os modificadores ajudam a considerar agentes específicos e interferem na terapia. Internação e uso de antibiótico recente tornam a hipótese de colite por Clostridioides difficile uma grande preocupação, sendo recomendado solicitar pesquisa de toxinas e antígeno e considerar terapia empírica. Viagens para países de baixa renda aumentam a chance de diarreias bacterianas, que são na maioria das vezes autolimitadas. Algumas regiões, em especial o sudeste da Ásia, têm níveis elevados de resistência a quinolonas [6, 7].

A paciente do caso deve ter uma diarreia aguda de causa infecciosa. A febre com calafrios chama atenção nessa faixa etária, com maior chance de uma causa bacteriana grave que explique os sintomas [8]. Enquanto que síndromes virais indiferenciadas podem explicar a maioria das doenças febris em adultos jovens, essa explicação é bem menos provável em idosos - menos de 5% dos casos [9].

Apesar de estar clinicamente bem, a paciente é vulnerável por conta da idade e comorbidades, sendo necessário avaliar função renal e eletrólitos. Apesar da diarreia no retorno da viagem, a Romênia não tem um evento epidemiológico de relevância no momento, exceto por sarampo. Seria interessante saber se outras pessoas que estavam viajando também apresentaram sintomas e se compartilharam refeições ou exposições. O manejo volêmico é delicado por conta das comorbidades cardiovasculares e do peso reduzido. A paciente pode ser hidratada por via oral. Se for optado por hidratação intravenosa, pequenas alíquotas devem ser feitas intercaladas por reavaliações.

Ainda no pronto socorro, foi feito 500 mL de ringer lactato, dipirona e ondansetrona. Exames laboratoriais evidenciaram: proteína C reativa (PCR) 193 mg/L, creatinina 1,09, hemoglobina 15,1 g/dL, leucócitos 10.400 com diferencial normal, plaquetas 138.000.

Considerando a fadiga intensa e ausência de sinais de hipovolemia, procurou-se causas extraintestinais para o quadro. Solicitado exame de urina que não mostrou alterações, porém a radiografia de tórax mostrava possível opacidade na base direita. Indagada novamente sobre sintomas respiratórios, negando tosse, porém relatando fadiga intensa. Iniciado ceftriaxona e azitromicina e optado por internação hospitalar para tratamento e investigação.

Tomografia de tórax realizada na internação com espessamento difuso das paredes brônquicas, associado a discretos focos de preenchimento luminal por secreção. Não se caracterizaram francas consolidações alveolares. Pesquisa de Sars-Cov-2 e influenza negativas. Exames no terceiro dia de internação com leucócitos de 13.100, plaquetas 198.000, PCR 71. Manteve-se afebril, sem diarreia e em bom estado durante a internação. Decidido por alta hospitalar e conclusão de antibioticoterapia com cefuroxima.


A internação é justificada pelo quadro inflamatório exuberante em uma paciente vulnerável, com a plaquetopenia podendo ser um sinal inicial de disfunção orgânica. Apesar de pneumonia ser um foco razoável para esse quadro no pronto socorro, a tomografia não mostrou consolidações ou opacidades, afastando essa hipótese. A broncopatia inflamatória vista pode ser uma consequência de uma infecção viral, porém a pesquisa de Sars-CoV-2 e influenza foram negativas. A diarreia não recorreu, podendo representar o foco primário que foi tratado ou um sintoma acessório de um quadro extraintestinal como já discutido anteriormente.

Houve boa evolução, com redução de parâmetros inflamatórios e ausência de novos sintomas. Por ser uma paciente vulnerável com um quadro inflamatório de etiologia não esclarecida, é interessante uma reavaliação precoce.

Dez dias após a alta, a paciente volta ao pronto socorro com retorno da queixa de diarreia e prostração. Nega febre, náuseas, vômitos e dor abdominal. Concluiu uso de cefuroxima há cinco dias. Informa que ficou bem durante quatro dias em casa, com retorno de quadro similar à internação. Relata três episódios por dia de evacuações inicialmente pastosas e agora líquidas, sem produtos patológicos.

Os sinais vitais são pressão arterial 128/66 mmHg com média de 80 mmHg, frequência cardíaca 77 batimentos por minuto, frequência respiratória 18 incursões por minuto, saturação 98%, temperatura axilar 36,9 ºC. O exame físico não revela mudanças em relação às primeiras avaliações, com exame abdominal completamente normal.

Exames laboratoriais revelam: PCR 138, creatinina 0,98, hemoglobina 15 g/dL, leucócitos de 14.250, plaqueta 199.000. Optado por alta com nitazoxanida e metronidazol e pesquisa molecular de patógenos nas fezes e pesquisa de toxinas A e B e antígeno GDH para C. difficile. Orientado em retorno em 48 horas para reavaliação.


Existem duas linhas para explicar essa evolução. A primeira é que a paciente tem a mesma doença desde o início. A segunda é que são dois quadros distintos, com os sintomas recentes sendo algo provavelmente secundário à internação hospitalar.

Seguindo a primeira linha, é possível que a doença tenha sido parcialmente tratada, já que houve resposta, porém não resolvida completamente. A resposta aos antibióticos sugere uma causa bacteriana, porém o retorno do quadro não é habitual para uma gastroenterite bacteriana. Isso sugere alguma complicação local, o que seria inesperado já que a paciente tem ausência de dor abdominal na história e exame físico, ou que a diarreia é um sintoma acessório de um foco fora do trato gastrointestinal. A fadiga persistente com PCR elevado na ausência completa de dor abdominal sugere essa possibilidade.

Diarreias que duram mais de duas semanas, mas tem menos de um mês, são denominadas de diarreias persistentes. Nas diarreias persistentes, a probabilidade de encontrar um patógeno na pesquisa das fezes é maior que nas diarreias agudas, devendo ser considerado a pesquisa microbiológica nesse contexto [3]. Existe uma maior probabilidade de infecção por Giardia, Cryptosporidium e Entamoeba nas diarreias persistentes, sendo essa microbiologia que provavelmente guiou a terapia empírica por nitazoxanida e metronidazol.

Considerando a possibilidade de serem duas doenças distintas, esse segundo quadro é uma suspeita de colite por C. difficile, uma vez que é uma diarreia após internação e uso de antibióticos. Uma dica laboratorial é a presença de leucocitose, que pode atingir valores chamativos. Tratar empiricamente com metronidazol enquanto a pesquisa de toxinas e antígeno estão pendentes é uma conduta aceitável.

A pesquisa molecular de patógenos nas fezes é um método que tem se tornado mais disponível. Esse exame pode detectar material genético de diversos agentes e o resultado fica disponível em horas. Contudo, sendo uma pesquisa molecular, o exame pode detectar o material de um ou mais patógenos sem representar germes viáveis causando infecção [10].

A paciente retorna em 48 horas conforme combinado. Os sintomas persistem, com aumento do número de evacuações para dez ao dia, líquidas, sem muco ou sangue. Nega demais sintomas. O painel molecular de patógenos nas fezes (MicroGenDX Gastrointestinal qPCR Panel®) não detectou microorganismos. Os sinais vitais mantinham-se dentro da normalidade. O exame físico segue similar ao início.

Realizada tomografia de abdome evidenciando sinais de oclusão/trombose da porção distal de sub-ramo da artéria esplênica, com sinais de isquemia do aspecto posterior do parênquima, acometendo cerca de 40% do baço (figura 1). Alças intestinais com calibres preservados e paredes de espessura normal, ausência de linfonodomegalias e coleções. Sem demais achados.

Figura 1
Tomografia de abdome
Tomografia de abdome

Coletadas culturas e iniciado piperacilina/tazobactam e vancomicina. Optado por internação hospitalar.


O achado tomográfico muda o direcionamento do caso. Complicações vasculares, como flebites esplâncnicas, podem ocorrer após uma gastroenterite e ter sido parcialmente tratada durante a primeira internação [11]. Contudo, o achado é de uma oclusão arterial, o que sugere embolização.

A paciente teve febre e mantém um estado inflamatório sem causa clara, tem fatores de risco para endocardite (valva protética e marcapasso intravenoso) e uma embolização arterial sem explicação. Isso é motivo suficiente para tornar endocardite infecciosa uma hipótese que precisa ser descartada nesse momento (tabela 1). Deve-se realizar hemoculturas e ecocardiograma. Inicialmente, um ecocardiograma transtorácico pode ser feito, mas um transesofágico tem maior sensibilidade para detectar vegetações e complicações.

Tabela 1
Situações para considerar a investigação de possível endocardite infecciosa
Situações para considerar a investigação de possível endocardite infecciosa

A decisão de iniciar terapia empírica deve ser individualizada e sempre deve ocorrer após a coleta de culturas. Pacientes estáveis com apresentação subaguda podem esperar os resultados das culturas sem antibióticos. A escolha do antibiótico é similar a endocardite de valva nativa, já que a paciente possui uma valva protética com mais de 12 meses de implantação. Uma opção é associar ampicilina e ceftriaxona segundo a diretriz de 2023 da sociedade europeia [12].

Veja o desfecho do caso

Dois pares de hemoculturas resultaram no crescimento de Enterococcus faecalis sensível a ampicilina e todos os demais antibióticos testados. Hemoculturas subsequentes não revelaram crescimento de microrganismos.

Realizado ecocardiograma transtorácico que não evidenciou imagens sugestivas de vegetações. Ecocardiograma transesofágico realizado dois dias depois evidenciou, em endoprótese valvar aórtica, massa aderida à face ventricular do folheto relacionado ao seio de Valsalva direito, com componente móvel medindo 8x6 mm, podendo corresponder a vegetação.

A antibioticoterapia foi modificada para ceftriaxona e ampicilina que foram feitos por 14 dias. A paciente manteve-se clinicamente bem, os parâmetros inflamatórios melhoraram e um novo ecocardiograma transesofágico não encontrou a vegetação mostrada anteriormente, mostrando boa função valvar e sem complicações.

Recebeu alta para conclusão de antibioticoterapia via oral em casa com amoxicilina e moxifloxacino por mais quatro semanas. Evoluiu sem intercorrências, voltando às suas atividades habituais.


Os achados ecocardiográficos e microbiológicos confirmam o diagnóstico de endocardite infecciosa. E. faecalis é considerado um microrganismo típico pela atualização dos critérios de Duke, independente de ser adquirido na comunidade ou no hospital ou da existência de um foco primário. Para um comparativo entre os critérios de endocardite de 2015 e a atualização de 2023, confira este link. Para mais sobre a atualização, veja este tópico.

A bactéria pode ter ganhado a corrente sanguínea durante a febre do início do quadro, posteriormente se alojando na valva protética. A primeira internação tratou parcialmente o quadro, já que ceftriaxona foi utilizada, gerando uma melhora transitória. A predominância de diarreia complicou o diagnóstico, sendo esse um sintoma raramente dominante nas endocardites. Apesar disso, existem relatos de endocardite por E. faecalis se manifestando como diarreia [13].

Dados recentes mostram algumas particularidades de endocardite infecciosa em pacientes com TAVI [14]. Neste estudo, os pacientes tiveram:

  • Mediana de idade de 82 anos
  • Mediana de tempo entre a implantação da TAVI e a ocorrência de endocardite de 461 dias
  • Mortalidade em cinco anos de 75%

Streptococcus spp. foi o germe mais prevalente (30% dos casos), porém a incidência de Enterococcus spp. é desproporcionalmente maior que em outros grupos (27% dos casos), um achado já descrito anteriormente [15].

Enterococos são cocos gram positivos de origem intestinal. Esses germes podem causar infecção urinária, bacteremia, endocardite e meningite. A maioria dos Enterococcus faecalis são sensíveis a ampicilina, enquanto que os Enterococcus faecium podem demonstrar resistência a ampicilina e vancomicina. A sigla VRE significa vancomycin-resistant enterococci ou enterococo resistente a vancomicina.

A terapia para infecções graves por enterococos, incluindo endocardite, tradicionalmente envolvia o uso simultâneo de ampicilina e gentamicina por conta de ação sinérgica. Esse sinergismo não ocorre de maneira tão consistente com amicacina, devendo ser evitada como substituta da gentamicina. Estudos recentes encontraram que, para endocardites por E. faecalis, o sinergismo de ampicilina com ceftriaxona é igualmente eficaz ao sinergismo com gentamicina, além de ser menos nefrotóxico [16]. Assim, associar ampicilina e ceftriaxona é uma opção de tratamento para endocardite por E. faecalis pelas diretrizes, porém não é recomendado para E. faecium.

A conclusão da terapia de endocardite por via oral é uma possibilidade em alguns casos, uma conduta respaldada pelo estudo POET [17, 18]. Condições necessárias para considerar terapia via oral são todas as seguintes:

  • Agente etiológico ser S. aureus, estreptococo, estafilococo coagulase negativo ou E. faecalis
  • Infecção controlada: sem febre por mais de dois dias, PCR menor que 25% do maior valor ou menor que 20 mg/L e leucócitos menores que 15.000
  • Tratamento adequado: ter recebido antibióticos intravenosos adequados por pelo menos 10 dias e, se precisou de cirurgia, pelo menos sete dias após a cirurgia
  • Ecocardiograma transesofágico descartando complicações com necessidade cirúrgica

O paciente deve receber reavaliações frequentes e realizar um novo ecocardiograma transesofágico um a três dias antes de completar a terapia [19].

Não saia sem saber!

Alguns pontos de aprendizagem sobre o caso que você não pode esquecer:

  • A abordagem de diarreia no pronto socorro pode ser estruturada em quatro perguntas: qual a causa? existem sinais inflamatórios? existem complicações ou vulnerabilidade há complicações? existem modificadores?
  • Diarreia pode ser um sintoma de infecções fora do trato gastrointestinal e essa possibilidade deve ser considerada especialmente quando existem sinais inflamatórios e a evolução é desfavorável
  • Os critérios de Duke não precisam ser decorados e podem ser consultados sempre que necessário. A parte mais difícil do diagnóstico é pensar em endocardite antes de complicações ocorrerem e o quadro ficar mais claro. Embolias inexplicadas associadas a um quadro inflamatório sempre devem levantar a suspeita de endocardite.
  • Enterococos são cocos gram positivos que causam infecção urinária, bacteremia, endocardite e meningite. São agentes prevalentes em endocardites de endopróteses aórticas implantadas de maneira percutânea (TAVI). Em endocardites causadas por E. faecalis, o tratamento pode ser feito com o sinergismo de ampicilina e ceftriaxona.
  • A terapia para endocardite pode ser concluída por via oral em alguns casos.

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