Trombocitopenia Induzida por Heparina
A trombocitopenia induzida por heparina é potencialmente fatal e envolve redução de plaquetas com eventos trombóticos. Em março de 2024, o JAMA Open publicou um artigo que avaliou a acurácia da abordagem diagnóstica dessa condição [1]. Este tópico revisa a definição, apresentação clínica e abordagem terapêutica da trombocitopenia induzida por heparina.
O que é trombocitopenia induzida por heparina?
Trombocitopenia induzida por heparina (TIH) tem duas apresentações: tipo I e tipo II.
TIH tipo I ou não imune é uma trombocitopenia assintomática leve e transitória (raramente inferior a 100.000/mm³) que ocorre nos primeiros dois dias de exposição à heparina. Desaparece rapidamente sem intervenção e tem menor importância clínica. Afeta até 10% dos pacientes em uso de heparina. Acredita-se que ocorre por efeito direto da heparina nas plaquetas, causando agregação plaquetária não imune [2, 3].
A TIH tipo II é a mais relevante e será o foco do tópico, denominada aqui apenas de TIH. Esta é uma reação adversa imunomediada contra a heparina. Uma característica desse processo é o desenvolvimento de anticorpos contra complexos formados por fator 4 plaquetário (PF4) e heparina. Pode ocorrer tanto na exposição à heparina não fracionada (HNF) quanto à heparina de baixo peso molecular (HBPM), sendo mais comum com HNF [4, 5].
A TIH autoimune é um terceiro tipo mais raro, caracterizado pela presença de anticorpos na ausência de exposição à heparina. Esse subtipo pode ter manifestações mais tardias, persistentes ou atípicas, com complicações em diversos órgãos e coagulação intravascular disseminada [6].
Os fatores de risco para a TIH incluem uso de HNF em dose terapêutica (via intravenosa) e exposição à droga por mais que cinco dias [7]. Outros fatores estão disponíveis na tabela 1.
Apresentação clínica
A tríade de achados na TIH é trombocitopenia (plaquetas < 150.000 mm³), trombose venosa ou arterial e queda plaquetária ocorrendo após a administração de heparina [5].
A TIH geralmente surge entre cinco a dez dias após o início da heparina e sua principal característica é a trombocitopenia. Quando houve exposição à heparina nos últimos 100 dias, a TIH pode se manifestar no primeiro dia após reintrodução da heparina [8, 9, 10]. Se o paciente recebeu heparina por 10 a 14 dias e ainda não apresentou TIH, é pouco provável que desenvolva a doença com a exposição continuada à droga [5].
Os eventos tromboembólicos ocorrem em aproximadamente 30 a 50% dos casos e podem se manifestar ao mesmo tempo ou antes da plaquetopenia. A trombose venosa é mais comum que a arterial, e o tromboembolismo pulmonar ocorre em até 25% dos pacientes [11, 12, 13].
Outros cenários que devem levantar a hipótese de TIH são [5]:
- Necrose cutânea nos sítios de aplicação da heparina, isquemia de membros e órgãos [14-17]
- Reação sistêmica aguda (febre, calafrios, taquicardia, hipertensão, parada cardiorrespiratória) após administração de heparina endovenosa [18]
- Queda na contagem de plaquetas > 50%, mesmo se a contagem de plaquetas for superior a 150.000/mm³
Apesar da plaquetopenia, sangramento é uma manifestação incomum [19].
Diagnóstico
Na suspeita de TIH, é recomendado aplicar o escore 4T - um sistema de pontuação clínica para determinar a probabilidade pré-teste de TIH (veja aqui a calculadora). O escore classifica o caso em três possíveis categorias: baixa (0-3 pontos), intermediária (4-5 pontos) e alta probabilidade (6-8 pontos) para TIH (tabela 2) [20].
Uma revisão sistemática e metanálise de 2012 avaliou o uso do escore 4T e demonstrou um alto valor preditivo negativo em pacientes com baixa probabilidade, indicando segurança para excluir TIH nesse cenário [21].
Nos pacientes com probabilidade intermediária ou alta, deve-se pesquisar o anticorpo anti heparina/fator 4 plaquetário (anticorpo anti-heparina/PF4). Imunoensaios (ELISA) para detectar este anticorpo são úteis na avaliação diagnóstica pela alta sensibilidade e alto valor preditivo negativo. Os anticorpos anti-heparina/PF4 podem estar presentes em pacientes sem TIH, devendo-se ter cautela na interpretação dos resultados [5, 22, 23].
A American Society of Hematology (ASH) recomenda utilizar inicialmente o escore 4T. Em casos de probabilidade intermediária ou alta, pesquisar a presença de anticorpo anti-heparina/PF4 com o imunoensaio. Na presença do anticorpo, a ASH sugere realizar um teste funcional para TIH para confirmar o diagnóstico (veja fluxograma 1) [24].
O estudo publicado no JAMA em março de 2024 avaliou a acurácia no diagnóstico de TIH com diferentes estratégias. Para a pesquisa do anticorpo anti-heparina/PF4, o estudo utilizou o teste HemosIL® AcuStar HIT-IgG (PF4-H). Este exame tem elevada especifidade, o que poderia não exigir um teste funcional para confirmar o diagnóstico de TIH. Foram comparados três métodos: escore 4T isolado, uso de PF4-H isolado e avaliação conjunta e sequencial dos métodos (escore 4T seguido de PF4-H se intermediário ou alto risco) [25]. O padrão ouro para comparação foi um teste de ativação plaquetária, realizado em todos os pacientes.
Para serem incluídos, os pacientes deviam ter a suspeita de TIH. Dos 1318 pacientes, o padrão ouro identificou a prevalência de 8,4% (111 pacientes) de TIH, a maioria na UTI e pós-cirurgia cardíaca. O algoritmo recomendado demonstrou especificidade de 86% e sensibilidade de 96%. A estratégia de usar o PF4-H isolado para todos mostrou maior especificidade (95%) como esperado, porém utilizar o algoritmo reduziria para aproximadamente a metade a necessidade de exames adicionais. O algoritmo ainda apresenta falhas que merecem atenção - 15 dos 111 pacientes com TIH seriam falsos negativos por essa estratégia.
Qual é a abordagem terapêutica?
Em pacientes com suspeita de TIH e probabilidade intermediária ou alta pelo escore 4T (≥ 4 pontos), deve-se interromper imediatamente todas as fontes de heparina. Apesar de contra intuitivo, mesmo diante da plaquetopenia, deve-se iniciar um anticoagulante não heparina antes mesmo do resultado do teste confirmatório (fluxograma 1).
A avaliação em conjunto com a hematologia é recomendada, já que decisões terapêuticas são comumente tomadas de maneira presuntiva devido à disponibilidade limitada dos testes adicionais e o algoritmo diagnóstico tem falhas.
A ASH recomenda a utilização de argatrobana, bivalirudina, danaparoide, fondaparinux ou anticoagulantes orais diretos (DOAC). Argatrobana, bivalirudina e danaparoide não estão disponíveis no Brasil. A escolha do anticoagulante é influenciada pela disponibilidade e via de administração do medicamento, bem como pelas condições do paciente - por exemplo, função renal, hepática e o estado clínico [24].
A intensidade da dose do anticoagulante não-heparina não é estabelecida em situações de incerteza diagnóstica (por exemplo, escore intermediário sem exames confirmatórios). A diretriz da ASH sugere a seguinte conduta:
- 4T intermediário, sem outra indicação de anticoagulação, com alto risco de sangramento: dose profilática
- 4T intermediário com outra indicação de anticoagulação OU sem alto risco de sangramento: dose terapêutica
- 4T elevado: dose terapêutica
Inicialmente, a varfarina pode acentuar o risco de trombose por redução de proteína C, logo, não deve ser iniciada até a recuperação da contagem de plaquetas (> 150.000/mm³) e deve estar associada a outro anticoagulante. Em pacientes que desenvolveram TIH em uso de varfarina, este medicamento deve ser descontinuado e revertido com vitamina K, e outro anticoagulante deve ser prescrito.
Recomenda-se não transfundir plaquetas, exceto em caso de sangramento ativo ou potencialmente fatal e não utilizar imunoglobulina como tratamento inicial, exceto em caso de TIH autoimune [24].
Na ausência de trombose, a anticoagulação deve ser mantida pelo menos até a resolução da trombocitopenia, que ocorre normalmente em sete dias.
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