Síndromes e Cenários

Eutireoideo Doente e Função Tireoidiana no Paciente Hospitalizado

Criado em: 01 de Julho de 2024 Autor: Joanne Alves Moreira

A análise da função tireoidiana sofre muitas interferências no paciente hospitalizado, dificultando a interpretação clínica. A alteração dos exames tireoidianos em uma doença sistêmica não tireoidiana é denominada síndrome do eutireoideo doente. Esse tópico revisa o tema.

Eutiroideo doente: definição e mecanismo

A síndrome do eutireoideo doente (SED) é definida como uma alteração dos exames de função tireoidiana em pacientes com doenças agudas ou crônicas, sem evidências de doença tireoidiana própria [1].

Vários mecanismos estão envolvidos na SED. As principais alterações ocorrem na atividade das iodotironina deiodinases, enzimas responsáveis pela conversão de T4 em T3 ou em T3 reverso (rT3), e na secreção de hormônio estimulador da tireoide (TSH).

Em uma doença aguda, a inibição da atividade da iodotironina deiodinase de tipo 1 (D1) reduz a conversão periférica de T4 em T3. Em doenças mais graves ou prolongadas, os níveis de T4 total e livre também podem diminuir. O valor do TSH geralmente está dentro dos limites da normalidade ou discretamente reduzido, refletindo uma supressão do eixo hipotálamo-hipófise-tireoide [1].

Parte dessas alterações podem corresponder a mecanismos adaptativos ao processo de adoecimento [2].

Medicamentos e doenças que alteram os exames tireoidianos

Alguns medicamentos podem alterar os exames tireoidianos sem afetar a função tireoidiana verdadeiramente. Outros alteram a função tireoidiana de fato (tabela 1).

Tabela1
Medicamentos que alteram os exames e/ou função tireoidiana
Medicamentos que alteram os exames e/ou função tireoidiana

Sepse, neoplasias, doenças cardíacas agudas e doentes em condições críticas podem exibir alterações nos exames tireoidianos. Condições que levam ao estresse fisiológico intenso (trauma, cirurgias e disfunções orgânicas) também estão envolvidas nessas alterações.

Avaliação da função tireoidiana no paciente internado

A função da tireoide não deve ser avaliada em pacientes graves, exceto se houver forte suspeição de doença tireoidiana. Os exames de função tireoidiana sofrem muitas interferências nesse contexto, dificultando a interpretação. A despeito disso, alguns pacientes graves têm como explicação para o quadro uma tireoidopatia (levando a coma mixedematoso ou tempestade tireotóxica, por exemplo), surgindo a necessidade de avaliação da função glandular se houver esse tipo de suspeita. Veja mais no tópico Coma Mixedematoso.

O perfil laboratorial típico de um paciente com SED é composto por T4 livre e TSH normais ou baixos e T3 baixo. Já o T3 reverso (rT3), se disponível, costuma estar alto [3].

Na suspeita clínica de doença tireoidiana no paciente internado, deve-se solicitar TSH e T4 livre. Se disponíveis, T3 e T4 totais podem ajudar no entendimento do quadro. O passo inicial da interpretação pode ser baseado no valor do TSH.

TSH baixo

Um TSH baixo com T4 livre elevado em um paciente hospitalizado significa SED na maioria das vezes. Contudo, alguns pacientes de fato terão hipertireoidismo. Nesse contexto, a dosagem de T3 e o grau de supressão do TSH podem ser úteis. Espera-se um T3 reduzido na SED, enquanto no hipertireoidismo está elevado.

Apesar de não ser definitivo, o nível de supressão do TSH também pode ajudar. Níveis discretamente reduzidos quase sempre representam SED. Valores abaixo de 0,05 mUI/L ou indetectáveis aumentam a chance de hipertireoidismo verdadeiro. Utilizando um ensaio de TSH de terceira geração, apenas 5 de 37 pacientes com SED tinham TSH < 0,005 mUI/L [4, 5].

Outros achados sugestivos de hipertireoidismo (como bócio, fibrilação atrial, tremores, perda de peso) devem ser considerados na interpretação. Uma nova dosagem após resolução da doença que motivou a internação é recomendada em casos de dúvida.

TSH alto

Apesar de SED habitualmente reduzir o TSH, alguns pacientes podem apresentar níveis elevados de TSH durante a recuperação clínica. A magnitude do aumento de TSH pode ajudar a diferenciar de hipotireoidismo verdadeiro. Valores de TSH acima de 20 mU/L associados a um T4 livre baixo aumentam consideravelmente a possibilidade de hipotireoidismo. Nesse caso, deve-se iniciar tratamento e avaliar a presença de coma mixedematoso [6].

Se o valor de TSH estiver entre o limite superior da normalidade e 10-20 mU/L, deve-se avaliar o T4 livre e, se estiver baixo, considerar início de tratamento para hipotireoidismo caso haja alta suspeita clínica. Em caso de dúvida, pode-se repetir os exames em uma a duas semanas [7].

Para pacientes que possuem TSH elevado, porém T4 livre normal, recomenda-se repetir os exames em uma a duas semanas [7].

Manejo do paciente eutireoideo doente

Para pacientes com baixos níveis dos hormônios tireoidianos, porém sem evidência de doença primária da tireoide, a reposição hormonal não é recomendada [8]. A reposição não mostrou benefício em desfechos de mortalidade, arritmias ou uso de vasopressores [9].

Valores baixos de T3 livre estão associados com aumento do tempo de internação e necessidade de ventilação mecânica na insuficiência cardíaca descompensada, sendo uma alteração com significado prognóstico [10]. Em uma análise semelhante, a presença de SED foi considerada um preditor de mortalidade em 30 dias em pacientes com pneumonia adquirida na comunidade [11].

Apesar desses dados, o objetivo deve ser o tratamento da doença de base, sendo a avaliação dos hormônios tireoidianos uma medida indireta da gravidade [12]. Com a melhora de condição de saúde, ocorre o restabelecimento dos níveis hormonais [5]. A normalização dos exames pode levar meses após a alta, não sendo necessária intervenção farmacológica [13].

Aproveite e leia:

23 de Outubro de 2023

Coma Mixedematoso

Coma mixedematoso é uma apresentação extrema de hipotireoidismo, com alta mortalidade. Em abril de 2023, uma coorte retrospectiva publicada no Annals of Intensive Care avaliou as características clínicas de pacientes com esse diagnóstico. Esse tópico revisa o tema e traz os resultados do estudo.

5 de Dezembro de 2022

Antibióticos para DPOC Exacerbada

O exato papel dos antibióticos nas exacerbações de doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) ainda é controverso. Um estudo publicado na Therapeutic Advances in Respiratory Disease em junho de 2022 comparou sete dias versus dois dias de antibióticos para DPOC exacerbada. Vamos ver os achados do estudo e revisar esse tema.

21 de Agosto de 2023

Febre no Pós-Operatório

A febre é uma das complicações pós-operatórias mais comuns. Pode ser parte de uma resposta normal à cirurgia ou ter uma causa patológica, como infecções. Este tópico discute as causas mais comuns e a investigação desse cenário.

10 min
Ler Tópico
17 de Junho de 2024

Choque Cardiogênico e Dispositivos de Assistência Circulatória

O infarto agudo do miocárdio é a principal causa de choque cardiogênico. Atualmente, a mortalidade de choque cardiogênico ainda é alta, podendo chegar a 50%. A rápida identificação e instituição de suporte hemodinâmico é crucial. Em março de 2024, foi publicado o estudo DanGer Shock no New England Journal of Medicine sobre uso da bomba de fluxo microaxial (dispositivo Impella CP) no choque cardiogênico após infarto. Este tópico expõe o manejo do choque cardiogênico e o que o estudo acrescentou.

10 min
Ler Tópico
5 de Fevereiro de 2024

Tromboembolismo Venoso em Pacientes com DPOC Exacerbada

Pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) apresentam risco até duas vezes maior para eventos trombóticos. Os sintomas de tromboembolismo pulmonar podem ser difíceis de distinguir de um episódio de exacerbação de DPOC. Um estudo publicado no International Journal of Chronic Obstructive Pulmonary Disease avaliou a prevalência de eventos tromboembólicos em pacientes admitidos com o diagnóstico de DPOC exacerbada. Este tópico revisa o tema e os achados do estudo.