Indicação de Hemocultura e Desabastecimento de Frascos
A empresa Becton Dickinson (BD), fabricante de frascos de hemocultura, anunciou em junho de 2024 a possibilidade de desabastecimento desse produto. A Infectious Disease Society of America (IDSA) e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) publicaram recomendações para lidar com a falta de frascos de hemocultura [1]. Esse tópico revisa as indicações de quando coletar hemoculturas, detalhes da coleta e estratégias para minimizar o impacto do desabastecimento.
Quando coletar hemoculturas?
Até 90% das hemoculturas solicitadas não apresentam crescimento bacteriano e até 50% das hemoculturas positivas podem representar contaminantes, e não patógenos verdadeiros [2]. Esses achados estão associados a aumento de custo e exposição desnecessária a antimicrobianos. A coleta e indicação apropriadas podem diminuir esses riscos.
Nem todas as infecções possuem indicação de coleta de hemocultura. Em muitas infecções, a chance de crescimento de bactéria na hemocultura é baixa. A indicação de coleta pode ser fundamentada na probabilidade da hemocultura apresentar crescimento, baseado em uma revisão da IDSA de 2020 [3] (fluxograma 1). De forma simplificada, é possível estratificar a probabilidade de crescimento em:
- Alta: probabilidade maior que 50% da hemocultura ser positiva. Exemplos são infecção de corrente sanguínea associa a cateter, meningite e endocardite.
- Moderada: probabilidade entre 10% e 50% da hemocultura ser positiva. Estão nessa categoria pielonefrite, colangite e pneumonia grave.
- Baixa: probabilidade menor do que 10% da hemocultura ser positiva. Nesse grupo estão febre e/ou leucocitose isolados, celulite ou pneumonia não grave.

Uma estratégia possível é coletar de todos os pacientes com probabilidade alta e de nenhum paciente com probabilidade baixa. Naqueles com probabilidade moderada, a coleta deve ser individualizada considerando três pontos. O primeiro é se o paciente possui um dispositivo intravascular. Se sim, a hemocultura deve ser coletada, pois infecção do dispositivo após breves episódios de bacteremia pode ocorrer. O segundo é se há uma alternativa a hemoculturas utilizando outras amostras, como a cultura de urina na pielonefrite. A cultura de fontes alternativas deve ser preferencial nesses casos. O terceiro é ponderar se hemocultura irá impactar no tratamento do paciente. O fluxograma 1 organiza essas orientações [3]. Essa estratégia é recomendada para pacientes imunocompetentes.
O paciente com sepse é uma exceção, pois a coleta está sempre indicada.
Em pacientes com infecção por Staphylococcus aureus, Staphylococcus lugdunensis ou por Candida spp. é recomendado repetir hemoculturas para documentar o clareamento da infecção. Na suspeita de infecção endovascular, associada ao cateter ou em pacientes sem controle de foco, a repetição pode ser considerada.
Aspectos técnicos da coleta de hemocultura
Após a solicitação do exame, são coletados dois pares de hemoculturas de rotina, cada par contendo um frasco aeróbio e outro anaeróbio. Em alguns casos, como endocardite, um terceiro par pode ser solicitado. Cada frasco de hemocultura deve receber pelo menos 10 ml de sangue, sendo este o fator com maior impacto para a positividade da hemocultura [4].
As hemoculturas devem ser preferencialmente coletadas por duas punções venosas periféricas distintas após desinfecção da pele. Quando coletadas por cateteres, as hemoculturas apresentam uma maior taxa de falso-positivos.
Em relação ao momento de coleta, a principal orientação é obter as amostras antes do início da antibioticoterapia. Coletas após início de antibioticoterapia podem apresentar redução significativa da taxa de positividade da hemocultura [5]. Não há correlação entre positividade da hemocultura e a coleta ter sido próxima a um episódio febril [6]. Contudo, coletar culturas pouco após um episódio clínico de tremores parece aumentar a sensibilidade da hemocultura [7].
Coleta de hemoculturas em crises de abastecimento
Medidas de contingência podem ser tomadas quando há escassez de frascos de hemocultura. As medidas variam conforme os protocolos de cada local. Abaixo estão elencadas sugestões propostas em um artigo recente da IDSA [1] e de um comunicado da SBI.
Solicitar um único par de hemoculturas para definir clareamento de infecções
Quando há recomendação de repetir hemoculturas para definição do tempo total de antibioticoterapia, a coleta de dois pares de hemoculturas é superior a um par. Contudo, quando há mais de quatro dias do diagnóstico de bacteremia e já é programada uma longa terapia antimicrobiana, a redução de coleta para um par a cada três a quatro dias pode reduzir a utilização de frascos.
Uso de frascos anaeróbios para definir clareamento de infecções
Diversos patógenos apresentam bom crescimento em frascos aeróbios e anaeróbios, como o S. aureus e S. pneumoniae. Se for necessário repetir culturas para confirmar a eliminação de uma infecção causada por um patógeno que cresce bem em frascos anaeróbios, e houver um maior número desses frascos disponíveis, pode-se optar por usá-los exclusivamente.
Não utilizar frascos de hemocultura para amostras não sanguíneas
A inoculação de líquido ascítico e pleural em frascos de hemocultura é utilizada para aumentar a sensibilidade do diagnóstico [8, 9]. Medidas alternativas, como envio do material em seringas, podem ser utilizadas para redução do uso de frascos de hemocultura.
Solicitar um único par de hemoculturas para o diagnóstico de infecções
Reduzir o número de frascos coletados pode reduzir a sensibilidade da detecção de patógenos. Por outro lado, a redução de sensibilidade pode ser justificada pelo risco de escassez total de frascos quando não há suspeita de um quadro grave, como sepse.
Utilizar frascos de hemocultura após o vencimento estipulado pelo fabricante
A utilização de frascos após a data de vencimento pode aumentar a quantidade de frascos disponíveis. Contudo, é necessário que os frascos sejam guardados em ambientes com temperatura e umidade controlados para não haver perdas significativas de desempenho [10]. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) já se posicionou em 12 de setembro de 2024 a favor da extensão de prazos de validade solicitado pela própria empresa BD.
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