Anticoagulação na Doença Renal Crônica

Criado em: 17 de Março de 2025 Autor: Caio Bastos Revisor: Nordman Wall

A presença de doença renal crônica (DRC) está associada tanto a um maior risco de sangramento quanto a um maior risco tromboembólico. Diversos estudos sobre o uso de anticoagulantes excluíram pacientes portadores de DRC, reduzindo a certeza das condutas nesse grupo. Este tópico revisa as principais evidências e recomendações de anticoagulação nessa população, com base nas diretrizes do Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO) de 2024 e em estudos recentes [1].

Características dos Anticoagulantes na DRC

Varfarina

A varfarina não possui eliminação renal e não necessita de ajustes específicos na diálise. O alvo de INR é o mesmo da população sem DRC e a monitorização com INR é acessível. Frequentemente, pacientes com DRC e taxa de filtração glomerular estimada (TFGe) < 60 ml/min/1,73 m2 necessitam de doses 10–20% menores do que a população geral para atingir a faixa terapêutica [2]). Também apresentam maior risco de sangramento e maior variabilidade dos valores de INR, podendo chegar a 50% do tempo fora da faixa terapêutica [3].

Para mais informações sobre a varfarina, confira o tópico “"Varfarina: Bulário e Quando Preferir em Relação aos DOACs".

Heparinas

Em estágios mais avançados de DRC (TFGe < 30 ml/min/1,73 m²), a heparina não fracionada (HNF) costuma ser preferida por ter meia-vida curta, a protamina como antídoto de ação rápida e monitorização com um exame acessível (TTPa). O alvo terapêutico não é modificado pela TFGe. 

Entre as heparinas de baixo peso molecular (HBPM), a enoxaparina é a mais disponível e requer ajuste de dose conforme a TFGe. Em pacientes com TFGe < 30 ml/min/1,73 m2, recomenda-se redução da dose habitual para 1 mg/kg/dia se o objetivo for anticoagulação plena. Em pacientes dialíticos, o uso não é geralmente recomendado, mesmo com a monitorização dos níveis de anti-Xa. Contudo, em doses reduzidas com indicação de profilaxia de eventos tromboembólicos, estudos retrospectivos sugerem um perfil de segurança semelhante ao da HNF em pacientes dialíticos [4].

Anticoagulantes orais diretos (DOACs)

Todos os DOACs possuem alguma eliminação renal. O que possui a menor eliminação renal é a apixabana (27%) [5]. Em relação à interferência da hemodiálise, apenas a dabigatrana é parcialmente dialisável, mas é contraindicada nesse grupo de pacientes [5]. É necessário realizar ajuste de dose de DOACs conforme a TFGe. A tabela 1 traz as doses dos DOACs para profilaxia de eventos tromboembólicos na FA com base na TFGe. 

Anticoagulação no tromboembolismo venoso e DRC

Pacientes com DRC apresentam alto risco de tromboembolismo venoso (TEV), com incidência crescente de embolia pulmonar à medida que a TFGe se reduz [6]. Na DRC, a ocorrência de TEV se associa a maior mortalidade, taxas elevadas de recorrência e maior risco de sangramento [7]. A presença de DRC não contraindica a anticoagulação nem altera significativamente a duração do tratamento em casos de TEV. Nesse sentido, opções convencionais de terapia, como varfarina, heparinas e DOACs, permanecem válidas, especialmente se TFGe > 30 mL/min/1,73 m2. 

Tabela 1
Doses sugeridas de anticoagulantes orais diretos para eventos tromboembólicos com base na taxa de filtração glomerular estimada
Doses sugeridas de anticoagulantes orais diretos para eventos tromboembólicos com base na taxa de filtração glomerular estimada

Os pacientes com TFGe < 25–30 mL/min/1,73 m² foram excluídos dos grandes estudos de DOACs, dificultando a comparação desses fármacos com a varfarina nessa população [8]. Um estudo observacional em pacientes dialíticos sugeriu que o uso de apixabana se associou a menores taxas de recorrência de TEV e de sangramento maior, sem influência na mortalidade, quando comparado à varfarina [9]. Entretanto, a falta de ensaios clínicos prospectivos randomizados impede uma recomendação formal acerca do uso de DOACs na DRC avançada. Por esse motivo, em pacientes com TFGe < 15 mL/min/1,73 m² a prática clínica corrente é o início de anticoagulação com HNF em bomba de infusão, com transição para antagonistas de vitamina K (tabela 1).

Anticoagulação na fibrilação atrial e DRC

À medida que a TFGe reduz, há menor certeza sobre o benefício da anticoagulação no paciente com FA e DRC. O KDIGO 2024 sobre DRC [1] e as diretrizes de FA europeia de 2024 [10] e americana de 2023 [11] recomendam que a anticoagulação deva ser considerada em pacientes com DRC e FA. Contudo, em pacientes com TFGe < 30 mL/min/1,73 m2, a decisão sobre uso da anticoagulação deve ser individualizada e se basear numa combinação de riscos tromboembólicos e de sangramento.

Pacientes não realizando diálise

Para a decisão sobre qual paciente portador de DRC deve ser anticoagulado, a utilização do escore de risco CHA2DS2-VASc é recomendada. Pacientes com pontuação ≥ 2 (se excluído o sexo feminino como fator de pontuação, como proposto pela nova diretriz da ESC) devem ser anticoagulados. Veja mais em "Atualização sobre a Nova Diretriz de Fibrilação Atrial da ESC 2024". Contudo, a presença de DRC é um fator de risco independente para eventos tromboembólicos, mesmo em pacientes com pontuação ≤ 1 [12].

Em relação ao risco de sangramento, o KDIGO recomenda a utilização de escores de risco, como o HAS-BLED, para auxiliar na identificação de potenciais fatores modificáveis. Caso fatores de alto risco para sangramento estejam presentes, como sangramentos graves prévios, hipertensão não controlada ou fragilidade, uma opção é não anticoagular o paciente. Entretanto, a presença de um alto risco de sangramento não reduz a probabilidade de eventos tromboembólicos.

Tanto a varfarina quanto os DOACs parecem reduzir eventos tromboembólicos e mortalidade [13, 14]. Várias diretrizes apoiam a anticoagulação e recomendam o uso de DOACs ao invés de varfarina em pacientes portadores de DRC [1, 10, 11]. Os DOACs também estão associados a menor incidência de injúria renal aguda (IRA) e progressão da DRC quando comparados à varfarina [15].

Um estudo retrospectivo de 2024 objetivou comparar os desfechos de pacientes portadores de DRC e TFGe < 30 mL/min/1,73 m² em uso de apixabana, rivaroxabana e varfarina em 6794 pacientes [16]. No estudo, o uso de apixabana associou-se a um menor risco de sangramento quando comparado à varfarina (HR 0,53, IC 95% 0,39-0,70) ou rivaroxabana (HR 0,53, IC 95% 0,36-0,78), sem diferenças na incidência de eventos tromboembólicos ou mortalidade.

Esses achados reforçam a ideia de que, entre os DOACs, a apixabana parece ser a alternativa mais segura na DRC avançada. Contudo, ainda não existem ensaios clínicos randomizados específicos, especialmente em pacientes com TFGe <15 mL/min/1,73 m² ou em diálise, com poder adequado para estabelecer conclusões definitivas.

Pacientes em diálise

Em pacientes dialíticos, o benefício da anticoagulação é incerto. Uma revisão sistemática com 42 estudos e 185 mil pacientes encontrou que o uso de DOACs ou varfarina não reduziu eventos tromboembólicos. Nesse mesmo estudo, o uso de varfarina esteve associado a mais eventos adversos [17]. Contudo, ainda são aguardados estudos randomizados sobre o assunto, com pelo menos quatro deles já registrados e em diferentes estágios de realização.

Fluxograma 1
Sugestão de manejo da anticoagulação em pacientes com doença renal crônica
Sugestão de manejo da anticoagulação em pacientes com doença renal crônica

O fluxograma 1 mostra uma adaptação do fluxograma sugerido na revisão publicada na revista Nephrology, Dialysis and Transplantation, de 2024, para anticoagulação em pacientes dialíticos portadores de FA [18].

Qual o papel do fechamento do apêndice atrial?

O fechamento do apêndice atrial esquerdo surgiu como uma alternativa à anticoagulação devido à maioria dos trombos de pacientes portadores de FA não-valvar ocorrer nesse local. Ensaios clínicos como PREVAIL e PROTECT AF demonstraram que a eficácia do procedimento para prevenir AVC é semelhante à da varfarina na população geral, com redução de sangramentos e mortalidade [19], enquanto o PRAGUE-17 mostrou não inferioridade em relação aos DOAC [20]. Entretanto, esses estudos excluíram pacientes com TFG < 30 mL/min/1,73 m² e estudos randomizados específicos para DRC foram encerrados precocemente por falta de recrutamento. Somente um estudo observacional com pacientes dialíticos sugeriu um menor risco tromboembólico e de sangramento com o fechamento do apêndice atrial esquerdo em comparação à varfarina [21].

Dessa forma, embora o fechamento do apêndice atrial esquerdo se mostre uma opção viável na população geral, ainda existem lacunas específicas em relação aos portadores de DRC avançada. Um consenso internacional já destaca que pacientes com DRC de alto risco de sangramento podem se beneficiar do procedimento [22]. Por ora, a indicação deve ser individualizada, considerando especialmente aqueles com risco hemorrágico muito elevado ou intolerância aos anticoagulantes tradicionais.

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