Trombose de Veia Porta em Pacientes com Cirrose

Criado em: 24 de Março de 2025 Autor: Amyr Chacar Revisor: Marcela Belleza

A trombose de veia porta ocorre em cerca de 14% dos pacientes com cirrose, com números ainda maiores em pacientes em descompensação e candidatos a transplante hepático [1]. O American Gastroenterology Association publicou uma atualização prática sobre o tema em fevereiro de 2025 [2]. Este tópico revisa o tema.

Quando suspeitar e como diagnosticar?

A trombose de veia porta tem manifestações clínicas variáveis. A intensidade dos sintomas costuma ser proporcional ao grau de oclusão venosa (parcial ou completa) e à proximidade com o evento trombótico (eventos recentes tendem a ser mais sintomáticos). 

Até 43% dos pacientes têm trombose de veia porta assintomática. Esses casos em geral são diagnosticados por exames de imagem por outros motivos, como no contexto de rastreio de carcinoma hepatocelular [3]. Apesar da elevada associação com cirrose, não há necessidade de rastreio de trombose de veia porta em pacientes assintomáticos com cirrose.

Dentre os pacientes sintomáticos, a dor abdominal é comum. Pode haver piora clínica da hipertensão portal, com exacerbação de varizes esofágicas e ascite [4, 5]. O aumento de transaminases é uma alteração laboratorial possível, geralmente discreta e, caso ausente, não pode ser utilizada para afastar a trombose. 

A investigação de trombose de veia porta deve ser considerada nas seguintes situações [2, 5, 6]: 

  • Dor abdominal.
  • Descompensação da cirrose sem causa clara.
  • Avaliação pré-transplante hepático (trombose de veia porta pode complicar aspectos técnicos do transplante e impactar em desfechos após a cirurgia [7]

Para o diagnóstico, inicialmente deve ser realizada a ultrassonografia com doppler. A sensibilidade varia conforme a experiência do avaliador e o grau de oclusão venosa [8]. Se a ultrassonografia for positiva, deve-se complementar a avaliação com tomografia computadorizada (TC) com contraste venoso em quatro fases (pré-contraste, arterial, portal e tardia) ou ressonância magnética com contraste​. O motivo dessa complementação é que esses métodos conseguem evidenciar melhor aspectos da trombose úteis para o manejo clínico, como extensão da trombose e características do trombo [9].

A trombose de veia porta é considerada crônica quando tem mais de 6 meses de duração, enquanto as outras são classificadas como recentes. Essa distinção tem impacto na terapia, pois pacientes com trombose crônica têm menor benefício com a anticoagulação. A imagem auxilia nessa definição. Achados na TC, como hiperdensidade do trombo na fase sem contraste, dilatação da veia porta e ausência de colaterais, sugerem um quadro agudo [10]. Embora classicamente associada à trombose de veia porta crônica, a degeneração cavernomatosa pode surgir em 1 a 3 semanas, limitando seu valor para definir a cronicidade do quadro [11].

A tabela 1 resume as características e vantagens de cada teste no diagnóstico da trombose de veia porta.

Tabela 1
Características dos exames de imagem na investigação de trombose de veia porta
Características dos exames de imagem na investigação de trombose de veia porta

Na ausência de cirrose, a trombose de veia porta está associada a doenças hematológicas (especialmente mieloproliferativas), trombofilias, doenças inflamatórias sistêmicas e fatores locais (como doenças inflamatórias intra-abdominais e neoplasias) [12, 13].

Nos pacientes com cirrose, a investigação para essas condições não é necessária de rotina, dada a alta associação com a própria cirrose [2, 13, 14]. Veja mais no tópico "Investigação de Trombofilias".

Quando anticoagular?

Na cirrose avançada é frequente o alargamento do tempo de protrombina (TP) e de tromboplastina parcial ativada (TTPA). Embora muitas vezes seja interpretada como tendência hemorrágica, essa alteração não indica obrigatoriamente maior risco de sangramento. Conforme a disfunção hepática evolui, ambos os fatores anticoagulantes e pró-coagulantes se tornam deficitários. Isso resulta em um novo estado, com tendência tanto hemorrágica quanto pró-trombótica [15, 16].

A anticoagulação no cenário da trombose de veia porta pode reduzir a extensão da trombose, diminuir o impacto na hipertensão portal, melhorar os desfechos relacionados ao transplante hepático e reduzir possivelmente a mortalidade [17, 18, 19 ]. Contudo, não existem ensaios clínicos randomizados nesse contexto.

A decisão é mais difícil na presença de complicações comuns nessa população, como plaquetopenia, varizes esofágicas e gastropatia hipertensiva. Paradoxalmente, mesmo nessas situações, a anticoagulação parece resultar em menores taxas de morbidade por sangramento digestivo [18, 20, 21].

Tabela 2
Características para decisão sobre tratamento da trombose de veia porta
Características para decisão sobre tratamento da trombose de veia porta

Pacientes com evidências de isquemia mesentérica devem ser anticoagulados com urgência. Fora desse contexto, a anticoagulação de pacientes cirróticos com trombose de veia porta recente deve ser considerada nas seguintes situações (tabela 2) [2, 6, 13, 14]:

  • Presença de sintomas.
  • Portadores de outras desordens pró-trombóticas.
  • Candidatos a transplante hepático.
  • ≥ 50% da luz da veia porta ocluída.
  • Acometimento do ramo principal da veia porta e/ou mesentérica.

Na ausência dessas condições, uma conduta expectante com imagens seriadas a cada 3 meses é possível. Caso ocorra progressão da trombose, agravamento da hipertensão portal ou aparecimento de sintomas, deve-se considerar anticoagulação. 

Pacientes com invasão tumoral da veia porta em geral são manejados com tratamento direcionado ao tumor (embolização e quimioterapia), tendo menor benefício da anticoagulação.

Tromboses crônicas apresentam mínima chance de recanalização. A anticoagulação não é recomendada rotineiramente pela diretriz de AGA, exceto em candidatos a transplante hepático na tentativa de preservação do leito vascular.
 

Anticoagulação: medicamentos e tempo de uso

Deve-se realizar a pesquisa de varizes esofágicas antes de iniciar a anticoagulação. Veja mais no tópico do Guia "Profilaxia Primária de Sangramento por Varizes Esofágicas". Pacientes já em uso de beta-bloqueadores não seletivos não precisam realizar uma nova endoscopia [13].
 
A taxa de recanalização é diretamente ligada ao tempo do início da anticoagulação, com melhores resultados quando iniciada precocemente [20]. Na incapacidade da realização da investigação em um rápido período, parece haver segurança na introdução da terapia enquanto se aguarda a realização da endoscopia e até mesmo realizá-la em vigência de anticoagulação, mas a decisão deve ser individualizada [22].

A heparina de baixo peso molecular (HBPM) é o anticoagulante de escolha na fase inicial do tratamento. A heparina não fracionada é uma alternativa em pacientes com disfunção renal grave, porém o maior risco de trombocitopenia induzida por heparina e dificuldade de controle pelo TTPA em pacientes cirróticos dificultam o uso [23].

Num segundo momento, os antagonistas da vitamina K também podem ser utilizados, apesar da dificuldade de controle de INR nesta população [16]. A evidência de segurança para o uso dos anticoagulantes orais diretos (DOACs) vem crescendo, com dados mostrando maiores taxas de recanalização e menor risco de sangramento, principalmente em pacientes com Child-Pugh A e B [24, 25]. As diretrizes contraindicam o uso de DOAC em Child-Pugh C [26].

A tabela 3 resume os principais anticoagulantes utilizados na trombose de veia porta.

Tabela 3
Principais anticoagulantes no tratamento da trombose de veia porta e suas particularidades
Principais anticoagulantes no tratamento da trombose de veia porta e suas particularidades

Acompanhamento

No período inicial da anticoagulação, a TC com contraste deve ser repetida a cada 3 meses para avaliar a resposta ao tratamento. No caso de progressão da trombose ou ausência de regressão apesar da anticoagulação, procedimentos intravasculares devem ser considerados, como o shunt portossistêmico intra-hepático transjugular (TIPS, na sigla em inglês), especialmente em pacientes com risco de isquemia intestinal e candidatos a transplante hepático [27].

Em caso de recanalização completa ou parcial, o tempo de tratamento deve se estender por um período mínimo de 6 meses. Ao término deste período, reavalia-se novamente com imagem quanto à recanalização completa:

  • Caso a recanalização não aconteça, pode-se suspender a anticoagulação, por mínima taxa de sucesso após esse período, a menos que o paciente seja candidato a transplante hepático.
  • Caso tenha ocorrido recanalização, a continuidade além deste período deve ser avaliada individualmente. Até 38% das tromboses de veia porta recorrem sem anticoagulação [28]. Em pacientes listados para transplante, considerando o alto risco de trombose e os possíveis benefícios da terapia, a anticoagulação deve ser continuada indefinidamente sempre que possível até o procedimento ou enquanto o risco de sangramento permitir [2, 6, 9].
Fluxograma 1
Manejo da trombose de veia porta em pacientes com cirrose
Manejo da trombose de veia porta em pacientes com cirrose

O fluxograma 1 resume o manejo da trombose da veia porta em pacientes com cirrose.

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