Caso Clínico #30
O caso clínico abaixo é apresentado em partes. O negrito é a descrição do caso, as partes que não estão em negrito são os comentários. Ao final, você encontrará a resolução e os pontos de aprendizagem resumidos.
Uma mulher de 19 anos vem ao pronto-socorro com queixa de febre há 6 meses. Ela descreve a febre como diária, predominantemente noturna. No período, apresentou perda de 10 kg, correspondendo a 20% do seu peso habitual (originalmente 50 kg). Além disso, relata inapetência, náuseas e vômitos esporádicos.
Nega tosse, diarreia ou manchas no corpo.
A febre de origem indeterminada (FOI) pode ser definida como uma febre com duração maior do que três semanas que persiste sem identificação etiológica após a investigação. Apesar de a paciente não ter sido amplamente investigada, o diagnóstico sindrômico de FOI pode auxiliar na identificação de doenças associadas com febre prolongada [1]. Veja mais em "Febre de Origem Indeterminada". O termo inflamação de origem indeterminada pode ser usado para pacientes com quadro que dura mais que 3 semanas, com aumento de provas inflamatórias, mas sem febre [2,3].
Em séries de caso de FOI, doenças infecciosas são as mais comuns, seguidas de neoplasias e doenças inflamatórias [3]. Existe uma variação regional nessa ordem de causas, já que em alguns países há predomínio de doenças autoimunes [4]. No Brasil, em uma série de casos com 34 pacientes, causas infecciosas corresponderam a 44% dos casos, enquanto colagenoses e neoplasias, 17,6% cada [5]. Tuberculose e linfoma foram os principais diagnósticos.
Em pacientes com febre prolongada, existe a dúvida se o tempo de febre pode auxiliar no diagnóstico. Há pouca evidência a respeito, mas um estudo dividiu a FOI em três grupos com durações diferentes: menos de 3 meses, entre 3 e 12 meses e mais de 12 meses [6]. Pacientes com FOI há mais de 12 meses foram menos propensos a receber diagnósticos de infecção ou neoplasia do que FOI há menos de 12 meses, e mais pacientes com FOI há mais de 12 meses ficaram sem diagnóstico.
O padrão da febre parece não auxiliar a determinar uma etiologia [7]. O padrão de Pel-Ebstein, por exemplo, caracterizado por períodos de algumas semanas de febre seguidos de algumas semanas sem febre, é classicamente descrito no linfoma de Hodgkin. Contudo, o padrão é pouco encontrado em pacientes com a doença, já foi descrito em doenças infecciosas e o artigo original que descreve o padrão não menciona o linfoma [8-10].
Além de febre, a paciente apresenta perda de peso e prostração, que parecem fazer parte de um processo inflamatório, mas são inespecíficos para uma etiologia. As náuseas e vômitos podem apontar para uma causa gastrointestinal, mas também são inespecíficos. Em todo paciente que se apresenta como uma possível FOI, a história deve ser extensa, valorizando pistas que possam direcionar a investigação. Procedência, viagens, contato com animais, história ocupacional, medicamentos, comorbidades e história familiar devem ser investigados.
A paciente nega antecedentes patológicos ou uso de medicações.
Nasceu na cidade de São Paulo. Nega viagens recentes. Atualmente, trabalha como atendente em uma loja de sapatos. Pai e mãe vivos e sem comorbidades.
Ao exame físico, apresenta frequência cardíaca de 78 bpm, pressão arterial de 100/70 mmHg, frequência respiratória de 24 irpm e saturação de O₂ de 96% em ar ambiente e temperatura de 38,4 oC. Não há lesões de pele à ectoscopia. Presença de linfonodomegalia cervical anterior esquerda medindo 2 cm e axilar esquerda de 2,5 cm, ambas indolores e móveis.
Os exames abdominal, pulmonar e cardíaco estão sem alterações.
As linfonodomegalias podem ser classificadas em localizadas e generalizadas. A generalizada é caracterizada por linfonodomegalia de duas cadeias não contíguas. Essa diferenciação pode auxiliar na determinação de etiologias [11].
Na linfonodomegalia localizada, o local de drenagem pode ser a origem do quadro. Na região cervical, neoplasias de cabeça e pescoço ou infecções respiratórias superiores podem explicar, já na região axilar, infecções pulmonares ou neoplasias intra-torácicas, como câncer de mama, são possíveis causas. A tabela 1 lista causas de linfonodomegalia generalizada.

Algumas características se associam com maior risco de malignidade. Linfonodos maiores do que 2 cm, localização supraclavicular e/ou ausência de dor são fatores encontrados em estudos. Além disso, presença de sintomas B (febre, perda de peso e sudorese noturna), hepatoesplenomegalia, idade maior que 40 anos e desidrogenase lática (DHL) aumentada também se associaram a maior probabilidade de neoplasia [12-15].
No momento, uma das principais hipóteses é de linfoma, considerando o tamanho dos linfonodos, a presença de conglomerado linfonodal, ausência de dor, o período prolongado e a falta de outros sintomas, como tosse. Infecção pelo HIV e tuberculose também são possibilidades. Além de exames laboratoriais, tomografia de abdome, tórax e pescoço auxiliam na identificação de outras cadeias, identificação de hepatoesplenomegalia e avaliação de lesões pulmonares sugestivas de tuberculose.
Os exames laboratoriais mostram hemoglobina 9,4 g/dL, leucócitos 3780/mm³ sem alteração no diferencial, plaquetas 139.000/mm³, creatinina 0,4 mg/dL, ureia 15 mg/dL, sódio 131 mEq/L, potássio 4,2 mEq/L, DHL 734 UI/L, bilirrubina total 0,43 mg/dL, aspartato aminotransferase (AST/TGO) 140 UI/L, alanina aminotransferase (ALT/TGP) 79 UI/L, PCR 141 mg/L e VHS 70. Testes de HIV, sífilis, hepatite B e C negativos.
A tomografia de abdome, tórax e pescoço evidenciou linfonodomegalias nas cadeias cervicais, mediastinais, hilares, paraórticas, ilíacas e mesentéricas bilaterais. Havia também linfonodomegalia na axila esquerda e nos planos profundos do músculo trapézio à esquerda, alguns formando conglomerados linfonodais.
Na tomografia de tórax, foi notado espessamento peribroncovascular bilateral, com tênues nódulos centrolobulares em vidro fosco de permeio no segmento basilar medial/anterior do lobo inferior direito. No abdome, o fígado demonstrava múltiplas imagens hipodensas menores do que 0,4 cm, inespecíficas. O radiologista sugeriu complementação com colangiorressonância magnética. O baço apresentava dimensões aumentadas.
Os exames laboratoriais mostraram anemia, plaquetopenia, aumento de transaminases e de DHL. Essas alterações são possíveis em pacientes com linfoma, mas não são específicas. Provas inflamatórias aumentadas também são inespecíficas.
A linfonodomegalia generalizada acomete também cadeias abdominais e torácicas, confirmando a suspeita de uma doença sistêmica. Em um paciente com linfonodomegalia difusa em que um linfoma é uma das principais hipóteses, o próximo passo da investigação é a biópsia de linfonodo. O linfonodo mais anormal é escolhido para a biópsia. Caso não haja um linfonodo marcadamente anormal, a escolha deve considerar os sítios com maior probabilidade de diagnóstico. O linfonodo supraclavicular é o mais relacionado com neoplasia e o inguinal o com menor chance de revelar o diagnóstico nas séries de casos [12,13].
A solicitação de biópsia deve incluir amostras para exame anatomopatológico, que serão colocadas em frasco com formol, e amostras em NaCl 0,9%, para realização de pesquisas microbiológicas. A coleta em NaCl 0,9% não é padronizada em todos os serviços e, caso toda a amostra seja colocada no formol, pode ocorrer atraso no diagnóstico microbiológico e necessidade de uma nova biópsia. Deve-se garantir a coleta de NaCl 0,9%, entrando em contato com a equipe que fará o procedimento e/ou o laboratório, se necessário. Na tabela 2 estão os exames comumente realizados em biópsias.

Existem várias técnicas de biópsia de linfonodo, dentre elas [14]:
- Punção aspirativa por agulha fina (PAAF): feita com agulha de calibre 22 ou maior. Consegue coletar células, mas não preserva a arquitetura tecidual.
- Core biopsy ou biópsia por agulha grossa: feita com agulha de calibre maior que a PAAF, entre 14 e 20 (quanto menor o número, maior o calibre). A amostra mantém a arquitetura tecidual.
- Biópsia excisional: retirada de todo o linfonodo para análise.
Na comparação entre as técnicas, a biópsia excisional está associada a menor número de falsos negativos, especialmente na investigação de linfomas. Entre a core biopsy e a PAAF, a PAAF está associada a maior número de falsos negativos e à necessidade de novas biópsias [15,16].
Em relação aos achados radiológicos, as imagens hepáticas são indeterminadas. Linfomas e neoplasias sólidas podem causar infiltração hepática e nódulos tumorais. Tuberculose e infecções fúngicas podem causar abscessos e lesões hepáticas. Com as alterações pulmonares encontradas, existe a possibilidade de tuberculose pulmonar, estando indicada a coleta de escarro. Tuberculose e linfoma podem coexistir. O linfoma pode ter imunossuprimido a paciente e propiciado a manifestação de tuberculose que antes estava sob controle.
Realizada a punção de linfonodo cervical esquerdo por dificuldade de acesso ao linfonodo em trapézio. A biópsia foi considerada inconclusiva, com sugestão de nova biópsia.
A colangiorressonância magnética demonstrou múltiplos microabscessos hepáticos e linfonodomegalias retroperitoneais, cujas dimensões e distribuição permitem considerar inicialmente o diagnóstico de doença linfoproliferativa.
Coletado escarro, com baciloscopia e teste rápido molecular, ambos negativos. Em aguardo da cultura de micobactérias.
A conduta diante de uma biópsia indeterminada depende das principais suspeitas, do risco de outro procedimento e de outros exames não invasivos que orientem o diagnóstico. Considerando que um linfoma persiste como uma suspeita importante, uma nova biópsia deve ser fortemente considerada.
Abscessos hepáticos são comumente causados por bactérias (também chamados de abscessos piogênicos) ou pela Entamoeba histolytica. Previamente, a causa mais comum em séries de casos era E. coli, mas estudos mais recentes sugerem uma mudança para Klebsiella pneumoniae como principal agente. A tabela 3 reúne causas infecciosas de abscesso hepático. O abscesso piogênico pode estar relacionado a doenças da via biliar, como colelitíase, colangite ou neoplasias [17,18]. Alguns estudos também sugerem associação com neoplasia colorretal e/ou parasitoses intestinais, como esquistossomose [19]. Tuberculose, equinococose e candidíase são causas menos comuns.

Em estudos, abscessos múltiplos parecem estar mais associados a doenças da via biliar, se comparados a abscessos únicos [20,21]. O abscesso amebiano é comumente único, em lobo direito e mais comum em homens. Algumas lesões hepáticas de linfomas podem ser confundidas com abscessos hepáticos [22-24].
Alguns estudos sugerem que abscessos menores que 3 cm podem ser tratados com antibioticoterapia, sem intervenção [25]. Já estudos com abscessos maiores que 3 a 5 cm sugerem que o tratamento exclusivamente com antimicrobianos pode falhar em até 80% dos casos [26].
A intervenção para retirar o conteúdo do abscesso hepático tem função diagnóstica, para coleta de culturas, e terapêutica, para controle de foco. O controle de foco pode ser feito de três formas principais [27]:
- Aspiração percutânea: aspiração do abscesso sem colocação de dreno, por via percutânea.
- Drenagem percutânea: aspiração e colocação de dreno, por via percutânea.
- Drenagem cirúrgica: drenagem por cirurgia aberta.
O fluxograma 1 organiza a abordagem do abscesso hepático.

No caso da paciente, o abscesso hepático pode ser piogênico. Contudo, lesões infiltrativas ou metástases podem se confundir com abscessos. Tanto uma biópsia do linfonodo quanto do abscesso hepático podem ser consideradas nesse momento. As mesmas orientações de biópsia de linfonodo se aplicam à biópsia hepática.
Realizada biópsia hepática por via percutânea com teste rápido molecular para tuberculose positivo na amostra. O exame anatomopatológico do fígado revelou padrão inflamatório crônico com formação de granuloma epitelioide com focos de necrose caseosa, além de edema e dilatação sinusoidal periportal.
A paciente também foi submetida a biópsia de linfonodo em região profunda de trapézio, que demonstrou proliferação linfoide atípica de células grandes, mono e binucleadas, com focos de necrose e fundo politípico associado, podendo corresponder à neoplasia linfoproliferativa, e devendo ser considerada possibilidade de linfoma de Hodgkin. A imuno-histoquímica foi compatível com linfoma de Hodgkin.
O tratamento para tuberculose foi iniciado. Durante o tratamento, evoluiu com piora de transaminases e hiperbilirrubinemia. Inicialmente feita a suspeita de toxicidade associada aos medicamentos, porém as alterações se mantiveram após a troca de esquema. Foi optado então por tratar o linfoma, considerando que essa doença poderia estar causando a piora hepática. A paciente faleceu por complicações da quimioterapia.
Abscesso hepático por tuberculose é uma condição rara e pode estar associada à doença disseminada. O aumento de transaminases após início de tratamento está geralmente relacionado à lesão hepática induzida por droga (DILI) pelo esquema RIPE (rifampicina, isoniazida, pirazinamida e etambutol). A rifampicina geralmente ocasiona aumento de bilirrubina, sem aumento de transaminases. Já a pirazinamida e a isoniazida estão relacionadas a aumento de transaminases. Veja mais em "Lesão Hepática Induzida por Drogas (DILI)".
Outra causa possível para a evolução da paciente é o fenômeno da piora paradoxal. Em pacientes com tuberculose, pode ocorrer piora transitória dos sintomas e/ou lesões após o início do tratamento. Esse comportamento pode ocorrer em pacientes com ou sem HIV. Em pacientes com tuberculose meníngea, por exemplo, séries de casos sugerem que de 7 a 56% dos pacientes podem apresentar essa manifestação [28-30]. Também podem surgir lesões ou sintomas em locais diferentes do quadro inicial [31]. A piora pode ocorrer dias a meses após o início de tratamento. Assim, em pacientes em tratamento de tuberculose que apresentam nova piora de sintomas após a melhora inicial ou surgimento de novas lesões ou sintomas, deve ser feita a suspeita de piora paradoxal. O tratamento é geralmente feito com corticoides.
A relação entre linfoma de Hodgkin e tuberculose não é clara na literatura, mas há relatos da associação, inclusive com identificação das duas condições no mesmo linfonodo [32,33].
O somatório de linfoma com tuberculose aumenta o risco de morte da paciente. A manutenção de alterações de transaminases mesmo com a troca dos medicamentos criou a suspeita de falha de tratamento de tuberculose. É possível que o linfoma estivesse associado a essa falha, justificando a decisão de quimioterapia. Ao mesmo tempo, existia o risco de piora da tuberculose com a quimioterapia ou o surgimento de novas infecções.
Alguns pontos de aprendizagem sobre o caso que você não pode esquecer:
- Infecções são a principal causa de febre de origem indeterminada nas séries de casos, mas pode haver variação regional. Febre por mais de 12 meses parece menos associada a doenças infecciosas e neoplásicas e há maior chance de não ser feito um diagnóstico. O padrão de febre não é um fator significativo na investigação etiológica.
- Em pacientes com linfonodomegalia, os seguintes fatores parecem aumentar a probabilidade de neoplasia: idade maior que 40 anos, localização supraclavicular, hepatoesplenomegalia e aumento de desidrogenase láctica (DHL).
- Na biópsia de linfonodo, deve ser feita coleta de material em formol para estudo histopatológico e em NaCl 0,9% para estudos microbiológicos, como cultura. O linfonodo mais anormal é escolhido para a biópsia.
- A biópsia excisional parece estar associada a menor número de falsos negativos, especialmente na suspeita de linfoma.
- Abscesso hepático piogênico pode estar associado às doenças da via biliar, como colelitíase, colecistite, colangite e colangiocarcinoma. Também parece haver relação com carcinoma colorretal e alguns autores sugerem investigar a neoplasia nesses pacientes.
- Durante o tratamento de tuberculose, após um período inicial de melhora, pode ocorrer piora de sintomas e/ou lesões, fenômeno chamado de piora paradoxal ou reação paradoxal. Geralmente é tratado com corticoides.
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