Gota: Diagnóstico e Manejo
Manifestações clínicas e fatores de risco
Gota pode se manifestar agudamente por inflamação articular (crise de gota) ou cronicamente pelo depósito de cristais em tecidos musculoesqueléticos e rins. A doença deve ser considerada em todo caso de artrite aguda, principalmente nas monoartrites. A primeira articulação metatarsofalangeana é a mais acometida nas crises, manifestação conhecida como podagra (figura 1) [1]. Outros locais frequentes são o mediopé e o tornozelo. Oligo ou poliartrite podem acontecer [3].

Caracteristicamente, na artrite por gota ocorre eritema e dor intensa que impede o uso da articulação. O paciente não costuma tolerar pressão leve do local. Quando nos pés, os pacientes apresentam dificuldade para deambular. O pico de dor costuma ocorrer nas primeiras 24 horas e os sintomas se resolvem em até 2 semanas [4]. As crises de gota são intercaladas por períodos assintomáticos. Se a gota não for tratada, pode haver aumento da duração e da frequência das crises [5].
Cerca de 15% dos pacientes apresentam tofos gotosos, que são depósitos visíveis de cristais de urato monossódico em tecidos. Esses tofos podem ser encontrados em articulações, cartilagens, tendões, bursas, ossos e tecidos moles (figura 2) [6]. Os tofos não costumam doer, mas podem inflamar agudamente e causar deformidades [7, 8]. Pode haver drenagem de material proveniente do tofo, semelhante a giz ou pasta de dente [8].

Cálculos renais de ácido úrico podem estar presentes em até 25% dos pacientes [9]. Ainda é motivo de debate se a deposição de ácido úrico nos rins pode causar doença renal crônica [10].
O principal fator de risco para gota é o nível elevado de ácido úrico no sangue (hiperuricemia), acima de 7 mg/dL em homens e 5,7 mg/dL em mulheres [11]. Apesar disso, somente metade dos pacientes com ácido úrico > 10 mg/dL desenvolvem gota em 15 anos de acompanhamento [5, 12, 13]. Veja mais sobre hiperuricemia assintomática em "Hiperuricemia Assintomática e Alopurinol"
Critérios diagnósticos: punção articular e escores clínicos
O diagnóstico de gota é confirmado quando há cristais de urato monossódico em articulação, bursa ou tofos. Na artrite, o material coletado para análise é o líquido sinovial, por meio da artrocentese (tabela 1).

A artrocentese com pesquisa de cristais é recomendada em todos os pacientes com suspeita de gota, segundo a diretriz da European League Against Rheumatism (EULAR) [14]. Um dos motivos da artrocentese é diferenciar a gota de artrite séptica. A presença de cristais de urato não exclui outros diagnósticos, como artrite séptica. Caso a suspeita de infecção seja elevada, os antibióticos devem ser mantidos até o fechamento de culturas, considerando as limitações do Gram no líquido sinovial [15].
Os achados de imagem típicos de gota incluem:
- Ultrassonografia: sinal do duplo contorno ou tofos não detectáveis ao exame físico.
- Tomografia de dupla energia: presença de cristais de urato no tecido conectivo. Também pode diferenciar de cristais de cálcio, encontrados na pseudogota [14, 16].
A radiografia simples identifica lesões que demoram anos para surgir, como erosões ósseas. Em pacientes com 4 anos de duração de doença, a sensibilidade de erosões ósseas é de somente 12%, mas a especificidade é de 96%.
Critérios clínicos podem ser utilizados para esclarecer dúvidas diagnósticas, especialmente quando há dificuldade de acesso a exames específicos. O critério de Janssens tem acurácia acima de 85% e foi validado na atenção primária e em pacientes hospitalizados (tabela 2) [17, 18].

O valor de ácido úrico sérico elevado aumenta a probabilidade de gota, mas cerca de 15% dos pacientes com crise de gota apresentaram ácido úrico < 6 mg/d. A dosagem após 4 semanas da crise tem maior sensibilidade para identificar hiperuricemia [4, 5, 19].
Tratamento agudo: medicamentos abortivos e profilaxia anti-inflamatória
O tratamento das crises de gota se divide em medicamentos para controle agudo e profilaxia anti-inflamatória (veja fluxograma 1).

Medicamentos abortivos/Controle agudo da crise
Medicamentos de primeira linha para o controle agudo são os anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs), colchicina e corticoides (orais, intravenosos ou intra-articulares). A eficácia é semelhante e a escolha deve se basear nas comorbidades, acesso e experiências prévias do paciente. A combinação pode ser necessária em quadros mais graves, como poliartrites. Em casos de doença renal crônica, a preferência é pelos corticoides [20, 21, 22].
A estratégia de doses mais baixas de colchicina é tão eficaz quanto doses mais altas e reduz efeitos colaterais como diarreia. Uma sugestão é usar 1 mg de colchicina, seguido de 0,5 mg após uma hora, sem repetição de doses no primeiro dia [23].
Entre os medicamentos de primeira linha, corticoides intravenosos podem oferecer alívio de dor mais rápido [5].
Profilaxia anti-inflamatória
A profilaxia anti-inflamatória deve ser feita continuamente por pelo menos 3 a 6 meses, pois períodos mais curtos foram associados a mais crises. O American College of Rheumatology (ACR) recomenda colchicina, AINEs, prednisona ou prednisolona como opções [20]. A EULAR recomenda a colchicina de 0,5 a 1 mg/dia [21]. A profilaxia anti-inflamatória durante o início da terapia para reduzir os níveis de ácido úrico é recomendada pelas diretrizes visando reduzir a frequência de crises nesse período.
Tratamento crônico: controle dos níveis de ácido úrico
A redução da concentração sérica de ácido úrico diminui os tofos e a frequência de crises [20].
Há uma hipótese de que a redução abrupta do ácido úrico sérico possa causar piora da crise de gota. Evidências recentes sugerem que esse fenômeno não deve ser uma preocupação. Dois ensaios clínicos randomizados encontraram que iniciar o medicamento durante a crise não piora a duração ou a gravidade da crise [20, 24, 25].
Indicações de controle de ácido úrico
O ACR indica a terapia para reduzir ácido úrico nos pacientes com qualquer um dos critérios abaixo:
- Crises recorrentes (duas ou mais ao ano)
- Presença de tofos gotosos
- Evidência de lesão radiográfica atribuível à gota (erosão em imagem)
A terapia também é recomendada nos pacientes com alta probabilidade de progredirem o quadro (ácido úrico > 9 mg/dL e doença renal crônica estágio 3 ou mais) ou nefrolitíase por cristais de ácido úrico. A EULAR também recomenda a terapia em adultos com menos de 40 anos ou ácido úrico > 8 mg/dL [21].
Medicamentos para controle de ácido úrico
O medicamento de primeira escolha é o alopurinol, um inibidor da xantina oxidase. É possível utilizar a droga em pacientes com doença renal crônica, mas com a dose ajustada. Deve ser iniciado em baixas doses, 100 mg ao dia ou menos, com ajustes a cada 2 a 4 semanas [26]. Algumas diretrizes orientam a testagem do HLA–B*5801 antes do início do alopurinol em pacientes do sudeste asiático e afrodescendentes pelo maior risco de síndrome de hipersensibilidade ao alopurinol [20, 21].
Os uricosúricos são medicamentos que induzem a perda de ácido úrico pela urina e são alternativas ao alopurinol ou podem ser utilizados em associação. A benzbromarona (Narcaricina ®) é um medicamento dessa classe que está disponível no Brasil. Não está indicado avaliar a excreção de ácido úrico urinário antes de iniciar os medicamentos [20].
O febuxostate, outro inibidor da xantina oxidase, é uma opção recomendada pelas diretrizes, mas que não está disponível no Brasil até o fechamento desta edição [20, 21].
Alvo de uricemia
O alvo de uricemia recomendado por ACR e EULAR é < 6 mg/dL. Alvos mais rígidos podem ser considerados em pacientes com quadros mais graves, por exemplo, com tofos, artropatia crônica e crises frequentes [20, 21].
O ACR recomenda o tratamento sem previsão para sua suspensão [20]. A adesão ao tratamento deve ser monitorada, pois até 20% dos pacientes abandonam o uso em 3 meses [27].
O algoritmo de manejo farmacológico está na figura 3.
Outras recomendações
O controle das comorbidades está indicado, além de ajustes no estilo de vida como reduzir gorduras e alimentos ricos em purina, perder peso e fazer exercício físico. Recomenda-se evitar alimentos com frutose e álcool, principalmente cerveja [28]. Dieta DASH ou dietas ricas em plantas estão associadas a menor risco de gota [29, 30]. Apesar disso, não há evidências suficientes que indiquem que dietas específicas melhoram o controle da gota [5].
É indicada a substituição de hidroclorotiazida e diurético de alça por outros medicamentos [21]. A losartana tem efeito uricosúrico e potencial benefício na gota [20]. Estudos recentes sugerem que os iSGLT2 estão associados à redução de uricemia e a um menor risco de crises de gota [31 - 34].
Uma cartilha para orientação dos pacientes com gota está disponível aqui.
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