Caso Clínico #31
O caso clínico abaixo é apresentado em partes. O negrito é a descrição do caso, as partes que não estão em negrito são os comentários. Ao final, você encontrará a resolução e os pontos de aprendizagem resumidos.
Uma mulher de 30 anos procura auxílio ambulatorial com queixa de crises epilépticas. O primeiro episódio ocorreu há um ano. Relata cerca de um episódio de crise por semana no último mês, indo repetidamente ao pronto-socorro.
A paciente informa que os episódios se iniciam com sensação de arrepio em todo o corpo e sensação de “angústia” no estômago que sobe para a região cervical. O acompanhante conta que, após essa sensação, a paciente apresenta movimentos orais repetitivos como se estivesse mastigando ou comendo uma bala. Refere também movimentos com a mão esquerda manipulando as roupas. Alguns desses episódios evoluíram com queda, postura tônica bilateral de membros e movimentos clônicos de membros, com duração máxima de 5 minutos. Após, há um período de confusão mental e cefaleia com duração aproximada de 30 minutos.
A paciente apresenta perda de consciência transitória. Os dois principais diagnósticos diferenciais são crises epilépticas e síncope. Os principais aspectos clínicos de diferenciação estão resumidos na tabela 1. No caso apresentado, há elementos consistentes com o diagnóstico de uma crise epiléptica, como presença de aura (arrepio no corpo e angústia), automatismos (movimentos mastigatórios ou como se “estivesse comendo uma bala”) e o período de confusão pós-ictal.

Há elementos na semiologia das crises epilépticas que permitem localizar a origem das crises de início focal. A crise epiléptica descrita teve um período de aura, com sintomas autonômicos (sensação epigástrica ascendente e piloereção), seguida de início focal da crise, com parada comportamental e automatismos manuais e orais, e evolução para crise tônico-clônica bilateral. Essa descrição de aura e início focal indica a localização no lobo temporal, região mais associada a crises epilépticas. A distinção entre uma crise de início focal ou generalizado tem importância na escolha de fármacos adequados para o tratamento desse tipo de crise. Veja mais em "Anticonvulsivantes".
Após reconhecer que a causa da perda transitória de consciência é por uma crise epiléptica de início focal, o próximo passo é identificar se a crise é provocada ou não provocada. Crises não provocadas levam à hipótese diagnóstica de epilepsia. Para preencher os critérios diagnósticos de epilepsia (tabela 2), a paciente deve apresentar episódios não provocados com intervalo mínimo de 24 horas.

Nesse momento, deve-se interrogar o que foi realizado nas idas da paciente ao pronto-socorro. As múltiplas ocorrências falam a favor de um quadro de epilepsia, mas é importante saber que nas ocasiões foram afastadas causas de crises convulsivas provocadas, como distúrbios eletrolíticos.
A paciente relata que nas idas ao pronto-socorro foram realizados exames laboratoriais, envolvendo pesquisa de disfunções orgânicas, distúrbios eletrolíticos e glicemia capilar. Todos os exames estavam normais. Ela recebeu alta do pronto-socorro com a seguinte prescrição:
- Fenobarbital 100 mg 12/12 horas.
- Carbamazepina 200 mg 12/12 horas.
- Valproato de sódio 250 mg 8/8 horas.
- Clobazam 10 mg uma vez à noite.
O diagnóstico de epilepsia está estabelecido. Deve-se realizar a investigação etiológica da epilepsia e ajustar a terapia medicamentosa para evitar a recorrência de novas crises.
Terapia medicamentosa
A paciente estava em tratamento ineficaz, tanto na escolha dos medicamentos quanto nas doses. A respeito da escolha dos fármacos, o valproato de sódio não é uma boa opção nesse cenário, por ter menor eficácia no controle de crises de início focal (como a da paciente) e estar em uma dose baixa. O valproato de sódio é teratogênico. Em mulheres em idade reprodutiva, deve-se informar sobre esse risco, avaliar previamente o desejo de gestação e orientar sobre métodos contraceptivos eficazes.
Os demais fármacos em uso (carbamazepina, fenobarbital e clobazam) são adequados para o controle de crises focais. O fenobarbital está na dose correta (2 a 3 mg/kg/dia) [1], porém a carbamazepina está em doses iniciais. A carbamazepina pode ser titulada até 1200 a 2000 mg/dia [2]. O clobazam é um benzodiazepínico que pode ser usado como tratamento de manutenção adjuvante de epilepsias de difícil controle na dose de até 40 mg/dia [3].
Para mais detalhes sobre anticonvulsivantes, veja o tópico "Anticonvulsivantes".
Investigação etiológica
Todo paciente com diagnóstico de epilepsia deve investigar a possibilidade de uma doença estrutural por um exame de imagem e realizar um eletroencefalograma (EEG). Orientações sobre realização dos exames e quando os repetir estão na tabela 3.

A probabilidade de se encontrar alterações estruturais epileptogênicas na ressonância após uma primeira crise epiléptica é de 23%. O acréscimo de contraste não causa grande ganho de sensibilidade para lesões epileptogênicas e pode não ser solicitado em primeiro momento [4]. A ressonância magnética é superior à tomografia nesse cenário [5].
O EEG pode confirmar o diagnóstico de epilepsia, estimar o risco de uma nova crise e auxiliar a identificar o tipo de crise (focal ou generalizada) ou uma possível síndrome epiléptica específica. O EEG possui baixa sensibilidade. Portanto, não se deve excluir epilepsia após um EEG normal.
Há medidas que aumentam a sensibilidade do EEG ambulatorial na detecção de descargas epilépticas interictais:
- Obter o maior tempo de registro possível: em um estudo com EEGs prolongados, nos pacientes que tiveram alteração do exame, 51% das anormalidades epileptiformes foram vistas em até 20 minutos, 71% em 30 minutos e 93% em 90 minutos [6].
- Registrar período de sono no EEG: o registro do sono no traçado aumenta a sensibilidade de detecção de descargas epileptiformes. Por isso, é importante orientar o paciente a realizar privação de sono na noite anterior para que se tenha o registro de sono no exame [7].
- Repetir o exame: repetir o EEG em até 3 a 4 oportunidades também resulta em aumento de sensibilidade. Em um estudo de coorte, após uma crise não provocada isolada, a sensibilidade cumulativa do EEG aumentou de 32% após o primeiro exame para 68% após o terceiro EEG [7, 8].
- Temporalidade do exame: EEGs realizados nas primeiras 24 horas após uma crise têm maior chance de detectar anormalidades [9]
Mesmo se alterado, os resultados devem ser interpretados em conjunto com outros achados. Cerca de 1% dos adultos sem epilepsia podem ter descargas epileptiformes no EEG [7].
Apesar de a epilepsia envolver risco poligênico e relação com a história familiar, os testes genéticos têm pouca importância na investigação de epilepsia iniciada nos adultos. Seu melhor uso é no contexto de síndromes epilépticas infantis, como encefalopatias epilépticas. Não deve ser considerado inicialmente para investigação.
Além dos ajustes medicamentosos, a paciente deve realizar uma ressonância magnética de crânio e um EEG.
Foi optado por reiniciar a terapia medicamentosa da paciente, com doses elevadas de carbamazepina e clobazam, e solicitar os exames.
Após os ajustes, a paciente retorna ao consultório mantendo a mesma frequência de eventos convulsivos. A ressonância magnética de crânio apresentou aumento de sinal e alteração da arquitetura do hipocampo à esquerda (ver figura 1). O achado foi caracterizado como uma esclerose do hipocampo esquerdo. O EEG mostrou descargas epilépticas frequentes em região temporal anterior esquerda.

A epilepsia pode ter diversas etiologias [10]. Os principais grupos são:
- Estrutural: caracterizada por anormalidades estruturais visíveis na ressonância magnética que sejam compatíveis com o tipo de crise e achados do EEG. Dentre as causas estruturais, estão lesões vasculares (como AVC), infecciosas (como abscessos e sequelas de encefalites) e genéticas (como malformações corticais). A esclerose do hipocampo, visto no caso da paciente, é uma causa estrutural de epilepsia.
- Infecciosa: várias infecções podem causar epilepsia, com destaque para a neurocisticercose, sendo a principal causa de epilepsia em muitos países em desenvolvimento [11].
- Genética: grande parte das epilepsias possui risco poligênico associado, mas dezenas de genes isolados podem ser relacionados às epilepsias. Geralmente, esses genes são relacionados a epilepsias de início na infância. O principal representante é o gene SCN1A, relacionado à síndrome de Dravet.
- Metabólica: erros inatos do metabolismo são um extenso grupo de alterações metabólicas que podem cursar com epilepsia. São mais prevalentes em crianças.
- Autoimune: as encefalites autoimunes são os principais representantes desse grupo e podem se apresentar com manifestações graves, como estado de mal epiléptico. O destaque é para encefalite anti-NMDA, como representante mais comum. Veja mais em "Encefalites".
- Desconhecida: muitos permanecem nessa categoria quando não há definição de etiologia após investigação. Em um estudo de coorte unicêntrico com adultos, até 45% dos pacientes permaneciam com etiologia indeterminada [12].
A esclerose de hipocampo vista no exame de ressonância magnética da paciente é relacionada à epilepsia de lobo temporal mesial. É uma etiologia estrutural e a principal causa da epilepsia fármaco resistente em adultos [13]. A doença é predominantemente unilateral, mas em 10% dos casos pode haver acometimento bilateral.
A epilepsia é definida como fármaco-resistente quando há uma falha em alcançar um controle de crises após utilização de dois fármacos anticrise adequados para o tipo de crise do paciente e em doses adequadas [14]. Logo, o quadro da paciente ainda não pode ser considerado fármaco-resistente até que seja ajustado e titulado o tratamento com fármacos anticrise.
O esquema terapêutico foi ajustado e titulado para carbamazepina 1200 mg/d, levetiracetam 4,5 g/d e clobazam 40 mg/d. As crises reduziram somente parcialmente, ocorrendo uma convulsão tônico-clônica bilateral a cada dois meses e duas crises focais disperceptivas por semana.
Desse modo, a paciente cumpriu critérios para epilepsia fármaco-resistente. Optou-se por encaminhar a um centro de referência terciário para avaliação de cirurgia para epilepsia mesial temporal. A paciente realizou ressecção cirúrgica do foco epileptogênico, evoluindo com desmame gradual de fármacos anticrise no pós-operatório e ausência de novas crises.
Em uma consulta de acompanhamento, a paciente pergunta se pode retornar a dirigir, agora que apresentou melhora das crises, e se pode engravidar.
Quando um paciente realiza cirurgia para epilepsia refratária e fica livre de crises no pós-operatório, até 40% permanece livre de crises após a retirada total de fármaco anticrise. Os outros pacientes conseguem diminuir doses ou atingir bom controle com monoterapia medicamentosa [15, 16].
Em relação às dúvidas da paciente, algumas orientações devem ser dadas durante o acompanhamento ambulatorial de pacientes com epilepsia:
Posso dirigir?
A legislação é regida pela Resolução n.º 425/2012 do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN). Declara-se apto para dirigir (categorias A e B — automóveis e motocicletas) o paciente com epilepsia livre de crises há pelo menos 1 ano e em regime terapêutico estável. Assim, pacientes em processo de retirada de medicação não devem dirigir, devem aguardar pelo menos 6 meses livres de crises a partir da retirada completa dos fármacos e não podem ser portadores de epilepsia mioclônica juvenil (associada a maior risco de recorrência de crises).
Quando posso tentar engravidar?
Mulheres em idade fértil e com desejo reprodutivo devem ser alertadas da teratogenicidade associada à maioria dos fármacos anticrise, visando estabelecer uma estratégia contraceptiva eficiente. No momento em que há desejo reprodutivo, a paciente deve ter o esquema de fármacos anticrise modificado, migrando para drogas com menor potencial de teratogenicidade. Os fármacos de primeira linha nessa situação são o levetiracetam e a lamotrigina. A oxcarbazepina pode ser utilizada como segunda linha.
Ácido fólico na dose de 5 mg ao dia deve ser suplementado desde o início do planejamento. As pacientes devem ser acompanhadas durante a gestação, com atenção para a possível titulação de doses nos diferentes trimestres gestacionais, pois alterações no nível sérico de alguns fármacos podem ocorrer, como a lamotrigina [17].
Vou tomar remédio para sempre?
Os pacientes que permanecem livres de crises por pelo menos 2 anos podem ser considerados para uma tentativa de redução de dose ou suspensão dos fármacos anticrise. Pacientes com EEG normal e sem alteração estrutural na RM têm mais sucesso em permanecer livres de crises. Os pacientes devem ser orientados de que o risco de recorrência de crises é maior no primeiro ano após a retirada dos fármacos (60 a 90%).
Deve-se ter atenção à velocidade de retirada de alguns fármacos, como os benzodiazepínicos e o fenobarbital, que devem ser descontinuados de maneira mais lenta, com redução de no máximo 25% da dose ao mês.
Pacientes com alteração estrutural, como esclerose de hipocampo ou síndromes epilépticas como a epilepsia mioclônica juvenil, raramente têm sucesso em permanecer livres de crises sem medicamentos. Somente 28% dos pacientes com esclerose de hipocampo conseguem permanecer livres de crises com fármacos anticrise [18].
Alguns pontos de aprendizagem sobre o caso que você não pode esquecer:
- Informações úteis para diferenciar síncope de crise epiléptica: aura, mordedura lateral de língua e confusão pós-ictal de 10 a 30 minutos apontam para crise epiléptica.
- Aura autonômica associada a automatismos orais/manuais sugerem crise focal de lobo temporal, principalmente causada por esclerose de lobo temporal mesial.
- Todo paciente com epilepsia deve realizar ressonância magnética e eletroencefalograma (EEG) para caracterizar o diagnóstico e buscar a etiologia. Obter o EEG por mais tempo, registrar o período de sono, repetir o exame e realizá-lo o mais próximo possível do evento aumentam a probabilidade de detectar uma alteração no exame.
- Epilepsia fármaco-resistente é considerada quando há uma falha em alcançar um controle de crises após utilização de dois fármacos anticrise adequados para o tipo de crise do paciente e em doses adequadas.
- Pacientes com acompanhamento ambulatorial de epilepsia devem ser orientados quando à restrição de dirigir, planejamento familiar e se será possível retirar os medicamentos anticrise.
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