Cefaleia em Salvas e Outras Cefaleias Trigêmino-Autonômicas

Criado em: 02 de Junho de 2025 Autor: João Urbano Revisor: João Mendes Vasconcelos

As cefaleias trigêmino-autonômicas são um grupo de cefaleias primárias que causam ativação autonômica durante os episódios de dor. A cefaleia mais comum desse grupo é a cefaleia em salvas. Esse tópico revisa o diagnóstico, o tratamento agudo e o tratamento de manutenção da cefaleia em salvas.

O que são e como diferenciar as cefaleias trigêmino-autonômicas

As cefaleias trigêmino-autonômicas são um grupo de cefaleias primárias que apresentam ativação autonômica do nervo trigêmeo durante os episódios de dor. A ativação autonômica pode ser tanto simpática quanto parassimpática. Os principais sinais e sintomas incluem lacrimejamento, hiperemia ocular, congestão nasal, rinorreia e miose pupilar.

Tabela 1
Características clínicas das cefaleias trigêmino-autonômicas.
Características clínicas das cefaleias trigêmino-autonômicas.

Esse grupo de cefaleias é dividido em quatro tipos principais, conforme as características clínicas e a resposta terapêutica (tabela 1):

  • Cefaleia em salvas. 
  • Hemicrania paroxística.
  • Hemicrania contínua.
  • Cefaleia neuralgiforme unilateral com sintomas autonômicos (SUNA, sigla derivada do inglês) e cefaleia neuralgiforme unilateral com edema conjuntival e lacrimejamento (SUNCT, sigla derivada do inglês).

A diferenciação pode ser difícil, mas tem implicações práticas, pois a hemicrania contínua e a hemicrania paroxística são particularmente responsivas à indometacina, um anti-inflamatório não esteroide. Além disso, a decisão pelo tratamento de manutenção também varia conforme o tipo de cefaleia trigêmino-autonômica.

Dentre todas as cefaleias trigêmino-autonômicas, a mais comum é a cefaleia em salvas. Há predomínio no sexo masculino e o primeiro episódio costuma ocorrer entre a segunda e a terceira décadas de vida. Em um estudo com 1604 pacientes com cefaleia em salvas, essa cefaleia foi eleita como a dor mais intensa já experimentada na vida, com nota média de 9,7 na escala analógica da dor, superando outras experiências como parto, nefrolitíase e ferimento por arma de fogo [1].

A localização é unilateral, na região periorbitária, orbitária ou temporal. A maioria dos pacientes apresenta sintomas restritos ao mesmo lado durante as crises e somente 14% apresentam mudança na lateralidade da dor entre períodos de crise [2]. A duração é de 15 a 180 minutos por episódio. Os sintomas autonômicos ocorrem do mesmo lado acometido pela dor e cerca de 70% dos pacientes apresentam todos os achados autonômicos típicos [3]. Inquietação e agitação são frequentes, estão descritas nos critérios diagnósticos (tabela 2) e auxiliam a diferenciar a cefaleia em salvas da enxaqueca, na qual ocorre a preferência do paciente pelo repouso em ambiente silencioso [4, 5].

Tabela 2
Critérios diagnósticos de cefaleia em salvas e sua caracterização.
Critérios diagnósticos de cefaleia em salvas e sua caracterização.

Álcool e nitratos podem desencadear episódios de cefaleia em salvas. O ciclo circadiano também influencia a condição, com cerca de 70% dos episódios de dor ocorrendo no mesmo horário do dia, sendo o horário mais comum entre 2 e 3 horas da manhã [6].

A cefaleia em salvas pode ser categorizada em episódica ou crônica (tabela 2). A episódica é caracterizada por períodos de crise que duram de 7 dias a 2 meses, no qual ocorrem os episódios de dor, seguidos de períodos de remissão de aproximadamente 6 a 12 meses, nos quais não ocorrem episódios de dor. A cefaleia em salvas crônica, por sua vez, é caracterizada por crises de dor sem períodos de remissão ou com períodos de remissão menores do que 3 meses.

Tratamento agudo e de transição da cefaleia em salvas

O tratamento da cefaleia em salvas divide-se em três partes: tratamento agudo, tratamentos de transição e tratamento profilático.

O tratamento agudo tem o objetivo de abortar ou aliviar os ataques de dor. Os tratamentos de primeira linha são o oxigênio a 100% em máscara não-reinalante 12 L/min por pelo menos 15 minutos ou sumatriptano 6 mg via subcutânea. Ambos os tratamentos foram testados em ensaios clínicos com resolução ou alívio da dor em 70 a 80% dos pacientes, com superioridade em relação ao placebo [7, 8].

Tratamentos de segunda linha podem ser utilizados, como o sumatriptano intranasal (pouco disponível no Brasil) ou outros triptanos orais. A maior barreira para um bom resultado com os tratamentos de segunda linha é o tempo para início do efeito, que pode chegar a 30 a 60 minutos, período em que a dor pode cessar espontaneamente. 

Os tratamentos de transição têm o objetivo de evitar novos episódios de dor durante o período de crise. O período de crise pode durar de 7 dias até 2 meses e o paciente pode apresentar repetidas crises de dor nesse intervalo (tabela 2). Os tratamentos de transição podem ser sistêmicos, como corticoides, ou locais, com bloqueio de nervos occipitais. Um dos esquemas estudados recentemente consiste na prescrição de prednisona 100 mg via oral por 5 dias, seguido de redução de 20 mg a cada 3 dias, atingindo uma diminuição de 2,4 episódios de dor por semana. Todos os pacientes tinham diagnóstico de cefaleia em salvas episódica e iniciaram o tratamento profilático de maneira concomitante ao tratamento de transição [9].

No bloqueio de nervos cranianos, há evidência de que a combinação de lidocaína 2% com corticoides, como a dexametasona, pode reduzir a recorrência dos ataques durante o período de crise [10]. Veja mais em "Tratamento de Cefaleia: Bloqueio de Nervos Periféricos".

Tratamento crônico e investigação da cefaleia em salvas

O tratamento profilático tem o objetivo de evitar novas crises a longo prazo. Está indicado para todos os pacientes com cefaleia em salvas e crises de dor incapacitantes. A possibilidade de não realizar tratamento profilático é reservada a pacientes com períodos de dor de curta duração (2 a 3 semanas) e que apresentem boa resposta aos tratamentos de transição. Essa opção deve ser sempre bem explicada ao paciente, pois mesmo com períodos de dor de curta duração, muitos optam pelo tratamento profilático, por se tratar de uma condição extremamente dolorosa e incapacitante.

O verapamil, um bloqueador de canal de cálcio não diidropiridínico, é o tratamento profilático de escolha. Deve-se iniciar 40 mg três vezes ao dia e elevar a dose, conforme tolerância, até 120 mg três vezes ao dia. Recomenda-se realizar um eletrocardiograma prévio ao tratamento e monitorar a frequência cardíaca. O uso é contraindicado em pacientes com insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida, pelo risco de piora do perfil hemodinâmico devido à bradicardia e ao efeito inotrópico negativo [11].

Outra opção para o tratamento profilático da cefaleia em salvas episódica são os anticorpos monoclonais anti-CGRP (peptídeo relacionado ao gene da calcitonina). Essa classe é bem estudada na prevenção de enxaqueca, mas também foi avaliada na cefaleia em salvas, particularmente o galcanezumabe. A dose estudada para cefaleia em salvas é de 300 mg por mês, maior do que a dose recomendada para tratamento de enxaqueca, sendo de 240 mg em dose de ataque e manutenção de 120 mg por mês [12]. Veja mais em "Profilaxia Farmacológica de Enxaqueca".

Outras opções profiláticas de segunda linha incluem lítio e ácido valproico, embora apresentem menor nível de evidência e pior perfil de efeitos adversos.

As opções terapêuticas para cefaleia em salvas episódica, como o galcanezumabe e o verapamil, não são eficazes para tratamento de cefaleia em salvas crônica. Estudos com outros anti-CGRP estão em andamento. Pacientes com cefaleia em salvas crônica, refratária ou que apresentem contraindicação ou intolerância ao tratamento medicamentoso devem ser avaliados por especialistas em dor para manejo de comorbidades e avaliação de terapias específicas, como neuromodulação [13].

Tabela 3
Diagnósticos diferenciais para investigação de causas secundárias de cefaleias trigêmino-autonômicas.
Diagnósticos diferenciais para investigação de causas secundárias de cefaleias trigêmino-autonômicas.

Apesar de ser uma cefaleia primária, a cefaleia em salvas exige diagnóstico diferencial com outras causas de cefaleia ou dores craniofaciais secundárias. Os principais diagnósticos diferenciais para causas secundárias de cefaleia com manifestações autonômicas estão na tabela 3.

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