Avaliação do Ventrículo Esquerdo pelo Ultrassom (POCUS)

Criado em: 02 de Junho de 2025 Autor: Amyr Chacar Revisor: Nordman Wall

A ultrassonografia à beira do leito (POCUS, sigla derivada do inglês point of care ultrasound) vem em constante expansão, auxiliando na tomada de decisões e no manejo de pacientes na prática clínica. Este tópico revisa a utilização do POCUS na avaliação da função ventricular esquerda.

Fundamentos

O ultrassom cardíaco à beira do leito (POCUS) é mais eficaz na detecção de disfunção ventricular esquerda e elevações de pressões venosas centrais do que o exame físico isoladamente [1]. A ferramenta possibilita o diagnóstico rápido e preciso de insuficiência cardíaca descompensada [2] e uma impressão diagnóstica mais precisa da etiologia de estados de choque circulatório [3].

Os principais usos do POCUS na avaliação ventricular esquerda são:

  • Avaliação da função ventricular esquerda
  • Identificação de câmaras cardíacas aumentadas
  • Diagnóstico diferencial do choque
  • Cálculo de débito cardíaco

Diferente da ecocardiografia convencional, o objetivo do POCUS cardíaco não é a descrição anatômica e funcional detalhada, mas sim auxiliar na resposta de dúvidas clínicas específicas [4]. Por exemplo: “Existe disfunção sistólica do ventrículo esquerdo?”.

Para a realização do POCUS cardíaco, o transdutor a ser utilizado é o setorial. Diferente da maioria dos modos ultrassonográficos, o marcador do transdutor (probe marker) tem sua referência à direita da tela e será posicionado durante o exame conforme a visualização cardíaca de interesse (figura 1).

Figura 1
Probe setorial e marcador do probe.
Probe setorial e marcador do probe.

Durante a obtenção das imagens, o paciente preferencialmente deve ser posicionado em decúbito lateral esquerdo, a fim de aproximar o miocárdio da parede torácica. O membro superior esquerdo deve estar elevado para aumentar a distância entre os espaços intercostais. Uma exceção é nas janelas subcostais, nas quais o paciente deve se posicionar em decúbito dorsal, com a musculatura abdominal relaxada, preferencialmente com os joelhos fletidos para facilitar o exame [5].

Cortes ecocardiográficos esquerdos

As diferentes maneiras em que o coração pode ser visualizado pela ultrassonografia são denominadas de cortes ou visões/vistas. O nome de cada corte combina a localização do transdutor no tórax (chamada de janela) e o eixo em que o coração é seccionado ou as estruturas visualizadas.

Os principais cortes ecocardiográficos empregados na avaliação do ventrículo esquerdo são: 

  • Paraesternal eixo longo
  • Paraesternal eixo curto
  • Apical quatro câmaras
  • Subcostal

Paraesternal eixo longo

O transdutor deve ser colocado na linha paraesternal esquerda, entre o 3º e 4º espaço intercostal, com o marcador do transdutor apontando para o ombro direito na posição entre 10 e 11 horas. A profundidade deve ser ajustada para cerca de 12 a 20 cm.

Neste corte, é possível avaliar as seguintes estruturas anatômicas de interesse:

  • Ventrículo direito
  • Via de saída do ventrículo esquerdo e valva aórtica
  • Ventrículo esquerdo 
  • Átrio esquerdo e a valva mitral

A figura 2 demonstra o corte paraesternal eixo longo e seus respectivos achados anatômicos.

Figura 2
Corte paraesternal eixo longo e seus respectivos achados anatômicos.
Corte paraesternal eixo longo e seus respectivos achados anatômicos.

Paraesternal eixo curto

O transdutor deve ser colocado na linha paraesternal esquerda entre o 3º e 4º espaço intercostal, com o marcador do transdutor apontando para o ombro esquerdo na posição de 2 horas. A profundidade deve ser ajustada para cerca de 10 a 14 cm. Esse corte pode ser acessado a partir do corte paraesternal eixo longo, ao girar o transdutor no sentido horário em um ângulo de 90°. 

Neste corte, é possível avaliar as seguintes estruturas anatômicas de interesse:

  • Ventrículo direito
  • Septo interventricular
  • Ventrículo esquerdo e os músculos papilares

A figura 3 demonstra o corte paraesternal eixo curto e seus respectivos achados anatômicos.

Figura 3
Corte paraesternal eixo curto e seus respectivos achados anatômicos.
Corte paraesternal eixo curto e seus respectivos achados anatômicos.

Apical quatro câmaras

O transdutor deve ser colocado na linha hemiclavicular esquerda entre o 4º e 5º espaço intercostal, com o marcador do transdutor apontando para 3 horas. A profundidade deve ser ajustada para cerca de 15 a 20 cm. Esse corte também pode ser acessado através da palpação do íctus cardíaco, com a colocação do transdutor imediatamente sobre ele.

Neste corte, é possível avaliar as seguintes estruturas anatômicas de interesse:

  • Ventrículo esquerdo
  • Ventrículo direito
  • Átrio esquerdo
  • Átrio direito

A figura 4 demonstra o corte apical quatro câmaras e seus respectivos achados anatômicos.

Figura 4
Corte apical 4 câmaras e seus respectivos achados anatômicos.
Corte apical 4 câmaras e seus respectivos achados anatômicos.

Subcostal

O transdutor deve ser colocado na linha esternal abaixo do processo xifoide, com o marcador do transdutor apontando para 3 horas. A profundidade deve ser ajustada para cerca de 16 a 25 cm. Uma vantagem deste corte é o posicionamento abdominal, sendo útil em pacientes em que as janelas torácicas não rendem uma boa visualização.

Neste corte, é possível avaliar as seguintes estruturas anatômicas de interesse:

  • Lobo esquerdo do fígado
  • Ventrículo esquerdo
  • Ventrículo direito
  • Átrio esquerdo
  • Átrio direito

A figura 5 demonstra o corte subcostal quatro câmaras e seus respectivos achados anatômicos.

Figura 5
Corte subcostal 4 câmaras (subxifóide) e seus respectivos achados anatômicos.
Corte subcostal 4 câmaras (subxifóide) e seus respectivos achados anatômicos.

Subcostal com enfoque na veia cava inferior

O transdutor deve ser colocado entre a linha esternal e a linha paraesternal direita ainda na região subcostal direita. O marcador do transdutor deve apontar para a cabeça do paciente, às 12 horas, e a profundidade deve ser mantida entre 16 a 25 cm. É possível acessar este corte através do corte subcostal ao centralizar o átrio direito na tela e realizar um movimento de rotação de 90º em sentido anti-horário. 

Nesta janela é possível avaliar as seguintes estruturas anatômicas de interesse:

  • Fígado
  • Veia cava inferior
  • Veias hepáticas

A figura 6 demonstra o corte subcostal com enfoque na veia cava e seus respectivos achados anatômicos.

Figura 6
Corte subcostal com enfoque na veia cava e seus respectivos achados anatômicos.
Corte subcostal com enfoque na veia cava e seus respectivos achados anatômicos.

O vídeo disponível no link explica a obtenção dos cortes cardíacos ultrassonográficos explicados.

Avaliação básica da função ventricular esquerda

Conhecer a função contrátil do ventrículo esquerdo tem várias aplicações clínicas. Por exemplo, para o diagnóstico diferencial de choque ou na suspeita de insuficiência cardíaca descompensada. A indisponibilidade de um ecocardiograma formal e o tempo necessário para realização do exame completo podem retardar a tomada de decisão, cenário no qual o POCUS cardíaco ganha espaço [4].

Através do POCUS, é possível graduar de forma qualitativa a função ventricular sistólica esquerda estimando a fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) [6]:

  • Hiperdinâmico: FEVE > 70%.
  • Normal: FEVE > 50%.
  • Levemente reduzida: FEVE entre 30 e 50%.
  • Muito reduzida: FEVE < 30%.

Estudos demonstram boa correlação da avaliação qualitativa com o exame ecocardiográfico formal [7, 8].

Fração de ejeção e débito cardíaco são conceitos diferentes, frequentemente confundidos. Fração de ejeção é uma medida referente à porcentagem do sangue ejetado pelo ventrículo esquerdo. Débito cardíaco é uma medida mais complexa que envolve o volume sistólico e a frequência cardíaca. Apesar de serem conceitos relacionados, um paciente pode ter uma fração de ejeção preservada e ainda assim um débito cardíaco diminuído.

Cada corte ecocardiográfico, isoladamente, não consegue fornecer todos os dados para uma boa avaliação da função sistólica. Recomenda-se a análise de diferentes cortes e métodos de estimativa da função ventricular para melhor acurácia do exame.

Para a estimativa da função ventricular sistólica esquerda através do POCUS cardíaco, as seguintes avaliações podem ser realizadas [7, 9-11]

  • Movimentação do folheto anterior da valva mitral
  • Excursão sistólica do plano do anel mitral
  • Redução da área intraventricular
  • Espessamento das paredes ventriculares

A integral velocidade-tempo da via de saída do ventrículo esquerdo (LVOT-VTI, sigla derivada do inglês) é utilizada para calcular o débito cardíaco de maneira mais precisa. Essa medida é mais complexa que as anteriores, com variação significativa na aferição dos valores e dificuldades na aquisição da imagem. Este tópico é direcionado para as medidas bidimensionais já mencionadas, por serem rápidas de obter, exigirem menor curva de aprendizado e serem suficientes para as decisões iniciais na maioria dos cenários. O LVOT-VTI será detalhado em um tópico futuro sobre a abordagem do choque com POCUS. 

Movimentação do folheto anterior da valva mitral

Em pacientes com função ventricular preservada, a diferença de pressão entre o átrio esquerdo e o ventrículo esquerdo na fase inicial da diástole é elevada. Isso promove um rápido enchimento ventricular e, por consequência, um deslocamento do folheto anterior da valva mitral em direção ao septo ventricular, para permitir a passagem do sangue. Quando a função ventricular está reduzida, o gradiente de pressão é menor, resultando em menor fluxo de sangue e menor deslocamento do folheto mitral anterior.

No corte paraesternal eixo longo (figura 2), uma linha imaginária pode ser traçada entre o ápice do ventrículo esquerdo e a região central da válvula mitral. Caso o folheto valvar anterior ultrapasse essa linha e se aproxime do septo interventricular, existe uma forte correlação com uma função ventricular preservada. A figura 7 exemplifica o achado.

Figura 7
Corte paraesternal eixo longo demonstrando a movimentação anterior do folheto da mitral.
Corte paraesternal eixo longo demonstrando a movimentação anterior do folheto da mitral.

A distância entre o folheto anterior da valva mitral e o septo pode ser medida no modo M, chamada de distância E-septal. Uma distância > 7 mm se correlaciona com uma elevada sensibilidade para a detecção de uma fração de ejeção reduzida e um valor > 8,4 mm possui maior especificidade [12, 13, 14]. A figura 8 demonstra a distância E-septal.

Figura 8
Cálculo da distância E-septal - corte paraesternal eixo longo.
Cálculo da distância E-septal - corte paraesternal eixo longo.

Excursão sistólica do plano do anel mitral

A contração ventricular esquerda reduz as dimensões do ventrículo em dois sentidos principais: circunferencial (as paredes laterais se movem para dentro) e longitudinal (a base do coração é “puxada” em direção ao ápice). Dessa maneira, o anel mitral, que está na base, se desloca em direção ao ápice cardíaco. Ao medir esse deslocamento, é possível inferir o componente de encurtamento longitudinal da fração de ejeção.

Quando o ventrículo tem a função preservada, o anel mitral na parede ventricular livre desloca-se > 10 mm anteriormente durante a sístole em relação à sua posição original ao fim da diástole [15]. A figura 9 demonstra a excursão sistólica do plano do anel mitral, também chamada de MAPSE (do inglês, mitral annular plane systolic excursion).

Figura 9
Excursão sistólica do plano do anel mitral - corte apical 4 câmaras.
Excursão sistólica do plano do anel mitral - corte apical 4 câmaras.

Essa avaliação é melhor realizada na janela apical quatro câmaras e também pode ser quantificada de forma mais precisa através do modo M [16]. A figura 10 exemplifica o achado [17].

Figura 10
Avaliação da excursão sistólica do ânulo da mitral (MAPSE) no modo M.
Avaliação da excursão sistólica do ânulo da mitral (MAPSE) no modo M.

Redução da área intraventricular

Durante a sístole ventricular, ocorre a aproximação concêntrica das paredes do ventrículo esquerdo. Como resultado, a área da cavidade ventricular sofre uma redução do seu tamanho de forma proporcional.

Em cenários de contratilidade preservada, espera-se uma redução de pelo menos um terço da área original. Essa avaliação é melhor realizada na janela paraesternal eixo curto, mas também pode ser realizada na apical quatro câmaras. A figura 11 demonstra o achado.

Figura 11
Redução da área intraventricular - corte paraesternal eixo curto.
Redução da área intraventricular - corte paraesternal eixo curto.

A redução da área intraventricular pode ser quantificada também através do modo M, denominada fração de encurtamento ventricular. O cálculo é feito da seguinte maneira:

Fração de encurtamento ventricular = (DdVE - DsVE) / DdVE X 100%

DdVE: distância interventricular ao fim da diástole./ DsVE: distância interventricular ao fim da sístole.

Valores de fração de encurtamento ventricular > 25% se correlacionam com uma fração de ejeção normal, 15-25% com uma fração de ejeção pouco reduzida e < 15% com uma fração de ejeção muito reduzida. Por ser sujeita a erros na mensuração, a avaliação qualitativa subjetiva é mais recomendada [18].

Espessamento das paredes ventriculares

Durante a contração ventricular, ocorre o espessamento dos ventres musculares. Caso a fração de ejeção seja preservada, é esperado um aumento de pelo menos um terço do tamanho original do músculo na sístole. A figura 12 exemplifica os achados.

Figura 12
Espessamento das paredes ventriculares - corte paraesternal eixo curto.
Espessamento das paredes ventriculares - corte paraesternal eixo curto.

O vídeo disponível no link explica a avaliação básica da função ventricular com exemplos ultrassonográficos.

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