Consenso Brasileiro de Neutropenia Febril
Neutropenia após quimioterapia citotóxica está associada a aumento de risco para infecções. Essa população pode não manifestar sintomas clássicos e a febre pode ser o único sintoma. O reconhecimento de neutropenia febril como diagnóstico operacional auxilia no início precoce do tratamento. Duas diretrizes recentes foram publicadas sobre o tema, uma pela Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH) [1] e outra pelo Grupo de Trabalho de Doenças Infecciosas (AGIHO) da Sociedade Alemã de Hematologia e Oncologia Médicas (DGHO) [2]. Esse tópico aborda a avaliação e o manejo de neutropenia febril.
Manifestações e fatores de risco
Neutropenia é definida como uma contagem absoluta de neutrófilos < 1.500 células/μL. A neutropenia ser estratificada conforme o valor de leucócitos:
- Leve: ≥ 1.000 e < 1.500 células/μL.
- Moderada: ≥ 500 e < 1.000 células/μL.
- Grave: < 500 células/μL.
- Agranulocitose: < 200 células/μL.
A American Association of Oncology (ASCO) e a Infectious Disease Society of America (IDSA) definem neutropenia febril como temperatura oral ≥ 38,3 °C em uma única medida ou ≥ 38,0 °C mantida por mais de uma hora, associada a neutropenia grave (< 500 células/μL) ou previsão de queda para esse valor nas próximas 48 horas [3]. A diretriz da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH) também utiliza o corte de 500 células/μL, mas outras diretrizes, como a da National Comprehensive Cancer Network (NCCN), consideram o corte de 1000 células/μL [4]. A diretriz americana sugere aferição de temperatura oral, mas o documento da ABHH também considera o valor de 38 °C por aferição axilar.
Em um cenário ideal, ao receber um paciente febril em uso recente de quimioterapia, deveria ser possível consultar uma fonte que listasse, para cada protocolo, (1) a frequência esperada de neutropenia, (2) o intervalo típico entre a infusão e o nadir neutrofílico, e (3) a duração média da neutropenia. Não encontramos esses dados em uma fonte única. O risco de neutropenia varia conforme o esquema (tipo, dose, combinação), fatores do paciente (idade, peso, comorbidades) e medidas de suporte (profilaxia com fator estimulador de colônia, ajustes de dose). As bases de dados disponíveis cobrem partes dessas informações, mas de forma fragmentada e sem padronização.
Nos tratamentos para neoplasias hematologicas, as neutropenias são mais frequentes, profundas e prolongadas. Já das neoplasias sólidas, há variação significativa conforme o esquema. Alguns exemplos de drogas de maior risco são ciclofosfamida, docetaxel, doxorrubicina, carboplatina e etoposídeo [5]. A diretriz da ASCO utiliza o período de até seis semanas após a administração da quimioterapia para embasar as recomendações da diretriz, sendo esse o intervalo de tempo em que o diagnóstico operacional de neutropenia febril é mais pertinente [3]. Alguns sites disponibilizam outros detalhes sobre eventos adversos de cada esquema.
O objetivo do diagnóstico de neutropenia febril é iniciar rapidamente o tratamento antimicrobiano para pacientes em risco de infecções graves. Como pode haver atraso em exames e momentos de dúvida, algumas situações podem justificar o início precoce do tratamento até uma melhor definição do quadro. Alguns exemplos incluem:
- Febre em paciente que recebeu quimioterapia recente (por exemplo, há menos de seis semanas), mas ainda sem dosagem de leucócitos disponível.
- Febre em paciente que recebeu quimioterapia recente e com neutropenia, mas ainda sem neutropenia moderada ou grave.
- Sem febre, mas com outros sintomas sugestivos de inflamação, como taquicardia, taquipneia ou hipotensão.
O foco das diretrizes e estudos com neutropenia febril é o paciente em uso de quimioterapia. Existe dúvida sobre a conduta naqueles com neutropenia por outros motivos. As referências não se posicionam de forma clara. Pacientes com neutropenia transitória por infecção viral, como dengue, não parecem ter maior risco infeccioso [6]. Já pacientes com linfoma, anemia aplásica e neutropenias congênitas, por exemplo, parecem ter maior risco infeccioso. Nesse cenário, a avaliação de um especialista pode auxiliar na tomada de decisão.
O termo neutropenia isolada ou incidental é usado por alguns autores para indicar a neutropenia em pacientes sem febre ou sinais de infecção e cuja queixa principal não está relacionada a um possível quadro infeccioso [7].
Investigação inicial
A neutropenia febril é uma emergência médica. Todos os pacientes, independentemente da estratificação de risco, devem receber antibioticoterapia de amplo espectro com cobertura contra Pseudomonas aeruginosa na primeira hora e, idealmente, após a coleta de culturas (tabela 1) [2]. Os esquemas de primeira linha incluem piperacilina-tazobactam e cefepima (tabela 2) [2]. Carbapenêmicos podem ser considerados a depender da microbiologia local e fatores de risco do paciente.

A avaliação clínica inicial visa identificar um possível foco infeccioso e estratificar a gravidade do paciente. O exame físico deve ser detalhado, com atenção especial em sinais de infecção em pulmões, cavidade oral, mucosas (incluindo região perianal), seios nasais, sítios de punção venosa e locais de inserção de cateter venoso central, incluindo acessos para infusão de quimioterapia (como do tipo Port-a-Cath) [2].

Devem ser coletados dois pares de hemoculturas de locais distintos. Se o paciente tiver algum acesso vascular, recomenda-se a coleta adicional de um par de hemoculturas diretamente do acesso [2]. Na presença de sintomas respiratórios, há preferência pela tomografia computadorizada de tórax, pois a radiografia de tórax apresenta menor sensibilidade em pacientes neutropênicos [2]. A pesquisa de disfunções orgânicas está recomendada e demais exames conforme a suspeita clínica.
Alguns pacientes com neutropenia febril podem ser tratados ambulatorialmente. Para auxiliar na decisão de internação e tratamento ambulatorial, as diretrizes sugerem que os pacientes sejam estratificados conforme o risco de complicações. Os escores MASCC e CISNE foram criados para avaliar risco de complicações em pacientes com neutropenia febril. O MASCC apresentou sensibilidade de 68% e especificidade de 71% para identificar pacientes de baixo risco em seu estudo original [8]. O CISNE parece identificar melhor pacientes de baixo risco, sendo recomendado de forma completar ao MASCC quando há planejamento de tratamento ambulatorial [9-12]. As diretrizes da IDSA, ASCO, NCCN e AGIHO recomendam o uso de critérios adicionais, além dos escores, para essa decisão. A tabela 2 organiza a avaliação de risco conforme cada diretriz.
Pacientes com leucemia aguda em tratamento de indução ou submetidos a transplante de medula óssea alogênico são considerados de alto risco.

O fluxograma 1 ilustra o manejo completo.
Tratamento conforme estratificação de risco e terapias adicionais
Pacientes de baixo risco
Após a administração da primeira dose de antibiótico de amplo espectro em ambiente hospitalar, é recomendada a observação clínica por pelo menos 4 horas. Na ausência de sinais de deterioração clínica ou novos sintomas, o paciente pode receber alta com esquema antimicrobiano oral, conforme a tabela 1 e o fluxograma 1 [3].
Mesmo em pacientes com baixo risco de complicação, a decisão de tratamento ambulatorial deve considerar questões logísticas, como acesso ao serviço de saúde em até uma hora em caso de novos sintomas ou para reavaliação (tabela 2).
Pacientes que se mantêm febris após 48 a 72 horas do início do antibiótico oral devem ser reavaliados quanto à possibilidade de um novo foco infeccioso ou progressão de uma infecção localizada não percebida anteriormente [3].
A antibioticoterapia empírica oral, nos pacientes sem foco documentado, pode ser suspensa após 3 a 5 dias de recuperação clínica e ausência de febre sem uso de antipiréticos, independentemente da recuperação completa da contagem de neutrófilos [3].
Pacientes de alto risco
Pacientes com neutropenia febril classificados como alto risco devem ser internados para manutenção do tratamento, pesquisa de foco e monitorização de complicações.
Manejo subsequente e terapias adicionais
O tratamento empírico para Staphylococcus aureus resistente à meticilina (MRSA) de rotina (com vancomicina, por exemplo) não é recomendado pelas diretrizes. Os critérios de cada diretriz para a cobertura de MRSA e anaeróbios e para a adição de aminoglicosídeos estão na tabela 3. O tratamento empírico com antifúngicos também não é recomendado de rotina, somente em pacientes com quadro clínico sugestivo de infecção fúngica.

O uso de fatores estimuladores de colônias também não é recomendado de rotina pelas diretrizes da AGIHO e da NCCN [13]. Contudo, a NCCN sugere considerar o uso em pacientes em piora clínica apesar do tratamento antimicrobiano.
Febre persistente
Em pacientes com neutropenia febril e febre persistente após 96 horas, sem foco infeccioso evidente e sem piora clínica, a manutenção da febre não justifica a troca do antibiótico empírico inicial. Nesse momento, é necessário incluir investigações adicionais [2].
Em pacientes com febre persistente após 4 a 7 dias de antibiótico empírico, sem foco definido, deve-se investigar infecções fúngicas. A prescrição empírica de antifúngicos nesse cenário é controversa. A diretriz da NCCN recomenda iniciar antifúngico de forma empírica nessa situação (veja tabela 4). A diretriz da AGIHO adota uma abordagem diferente, orientando a prescrição somente após evidências em exames de imagem ou biomarcadores (como galactomanana sérica), desde que esses recursos diagnósticos estejam disponíveis e com resultados em tempo hábil [4, 14]. Veja mais em "Biomarcadores de infecções fúngicas".

Critérios de melhora e suspensão das terapias
Neutropenia febril é um diagnóstico sindrômico criado para acelerar a instituição de antibiótico de amplo espectro antes que se defina a etiologia da febre. Esse rótulo é temporário e, à medida que o paciente evolui e a investigação prossegue, o quadro se define em uma das três situações:
- Infecção documentada clinicamente. Cenário em que evidências clínicas indicam um foco infeccioso provável (por exemplo, uma consolidação na tomografia de tórax).
- Infecção documentada microbiologicamente. Situação em que um achado microbiológico indica o foco infeccioso (por exemplo, hemocultura positiva).
- Febre de origem indeterminada ou febre sem foco definido. Pacientes em que não foi encontrada evidência clínica ou microbiológica de infecção.
Caso um foco infeccioso seja identificado, o paciente deve receber terapia guiada específica para aquele foco e o tempo de tratamento conforme o local da infecção [15].
Segundo a diretriz recente da AGIHO, em pacientes com neutropenia febril que evoluíram para febre de origem indeterminada, a antibioticoterapia empírica pode ser suspensa independentemente da contagem de neutrófilos, contanto que os seguintes critérios sejam atendidos [2]:
- Pelo menos 72 horas de temperatura < 38,0 °C, sem antipiréticos.
- Melhora clínica.
- Capacidade de monitorar a contagem de neutrófilos até a recuperação completa.
Essa abordagem contrasta com diretrizes anteriores que recomendavam manter o tratamento por pelo menos 7 dias após a defervescência. A evidência acumulada de estudos retrospectivos e a de um ensaio clínico randomizado indicou que a suspensão precoce está associada a menor exposição a antibióticos, sem aumento de falhas clínicas ou mortalidade [2, 16].
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