Caso Clínico #37
O caso clínico abaixo é apresentado em partes. O negrito é a descrição do caso, as partes que não estão em negrito são os comentários. Ao final, você encontrará a resolução e os pontos de aprendizagem resumidos.
Uma mulher de 44 anos iniciou dor na região do quadril direito há 10 dias, em queimação e associada a lesões cutâneas em dorso. Há sete dias, buscou ajuda em unidade de pronto atendimento (UPA) por piora da dor. Foi internada com a hipótese de celulite, sendo iniciada ceftriaxona. Houve piora das lesões, com surgimento de vesículas e aumento da extensão do dorso para os membros inferiores. Negou perda ponderal, febre, dispneia, tosse, artralgia, alterações do trato gastrointestinal ou geniturinário.
A paciente está em acompanhamento em um serviço de reumatologia desde 2019 com a hipótese de lúpus eritematoso sistêmico (LES), com manifestações cutâneas, articulares, hematológicas e vasculite de sistema nervoso central. Está em investigação de síndrome antifosfolípide (SAF), após episódio de aborto com 12 semanas de gestação e dois episódios prévios de trombose venosa profunda. Também possui diabetes mellitus tipo 2.
Em uso de varfarina 5 mg/dia, azatioprina 150 mg/dia, metotrexato 15 mg/semana, ácido fólico 5 mg/semana e sulfametoxazol/trimetoprim 800/160 mg três vezes por semana. A azatioprina foi suspensa no momento da internação.
Após sete dias, apresentou cefaleia holocraniana de intensidade 7/10, náusea e rebaixamento do nível de consciência. Solicitada transferência para hospital de maior complexidade.
Na ambulância de transferência foram aferidos sinais vitais: pressão arterial 179/105 mmHg, frequência cardíaca 117 bpm, temperatura axilar 36,6 °C, frequência respiratória 19 irpm, saturação periférica de oxigênio de 95% em ar ambiente e tempo de enchimento capilar de 2 segundos. Glicemia capilar de 90 mg/dL e escala de coma de Glasgow de 8.
Cerca de 70% dos casos de rebaixamento do nível de consciência admitidos no setor de emergência têm explicação em condições sistêmicas ou com foco fora do sistema nervoso central (SNC) (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/35322140/). Dessas, as mais comuns são infecções sistêmicas fora do SNC, distúrbios metabólicos (como cetoacidose ou hipoglicemia) e intoxicações. Entre as causas intracranianas, acidente vascular cerebral (AVC) é o mais comum. Infecções com foco no sistema nervoso central são menos comuns dentre todas as causas.
É possível organizar as etiologias em seis mecanismos (tabela 1). Para essa paciente, destacam-se condições não infecciosas primárias do SNC, infecções e distúrbios metabólicos sistêmicos.
Uso de varfarina e piora súbita sugerem sangramento intracraniano. Por outro lado, o histórico de tromboses e a investigação de SAF favorecem a hipótese de trombose venosa central. A própria vasculite pelo LES também pode explicar o quadro.
A azatioprina está associada a aumento do risco de infecções virais e bacterianas. Entre as virais, destaca-se a reativação de herpes-zóster e o herpes simples, que pode estar presente em até 6% dos pacientes. A probabilidade de infecções bacterianas é maior na presença de leucopenia, com aumento do risco de infecções respiratórias, gastrointestinais e urinárias (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/37850609/, https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/36122787/).
O surgimento de vesículas sugere herpes zoster ou herpes simples, que podem causar meningoencefalite ou vasculite. Outras doenças infecciosas específicas que podem se apresentar com lesões de pele e alteração do nível de consciência são meningococcemia, síndrome do choque tóxico estafilocócico ou estreptocócico, endocardite infecciosa, dengue e febre maculosa. Em imunossuprimidos, histoplasmose e criptococose são possibilidades.
Distúrbios metabólicos parecem improváveis. A glicemia está normal e sua aferição deve fazer parte da avaliação inicial de todo paciente com alteração do nível de consciência. Intoxicação é uma hipótese remota, considerando que a paciente estava internada. Uso de opioides e outros medicamentos com potencial sedativo deve ser investigado.
A avaliação na sala de emergência deve determinar a necessidade de intubação e a possibilidade de reverter rapidamente o quadro com antídotos (especialmente se houver uma toxíndrome) ou reposição glicêmica. O exame físico inicial deve conter sinais vitais, exame geral direcionado e exame neurológico. Hipertensão sistêmica, no contexto de rebaixamento, pode significar hipertensão intracraniana. Ausência de febre não exclui infecção.
O exame físico geral deve buscar sinais de trauma craniano (como feridas), toxindromes e focos infecciosos extracranianos. No caso em questão, lesões de pele associadas ao lúpus (como eritema malar, úlceras orais e alopecia) devem ser procuradas. É importante verificar se as vesículas respeitam dermátomos, o que reforça a hipótese de herpes-zóster disseminado.
Déficits neurológicos focais sugerem uma doença intracraniana. O exame neurológico deve conter:
- Determinação do nível de consciência (habitualmente com a escala de coma de Glasgow).
- Fundoscopia.
- Rigidez nucal.
- Avaliação dos nervos cranianos (especialmente reflexos pupilares).
- Resposta motora.
- Presença ou ausência de movimentos involuntários.
Isoladamente, rebaixamento de nível de consciência com escala de coma de Glasgow de 8 não é uma indicação absoluta de intubação orotraqueal (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32382780/, https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33303004/). Contudo, a ausência de causas rapidamente reversíveis (como hipoglicemia e intoxicações) e a profundidade do rebaixamento sugerem que uma via aérea definitiva deve ser considerada. Veja mais em "Consenso de Via Aérea Fisiologicamente Difícil" e "Intubação por Rebaixamento e Manejo da Via Aérea na Intoxicação".
Ao exame, a paciente estava sonolenta. Abertura ocular ao estímulo doloroso, resposta verbal com sons incompreensíveis, não obedecendo aos comandos, apresentando resposta motora inespecífica ao estímulo doloroso. Exame cardíaco, pulmonar e abdominal sem alterações.
Pupilas isocóricas e fotorreagentes, fundoscopia não realizada. Reflexo oculocefálico presente, porém ausência de componente abdutor do olho direito à rotação cefálica para a esquerda. Mímica facial simétrica. Sensibilidade preservada. Força motora grau 2 em todos os membros, com retirada dos quatro membros ao estímulo doloroso, porém com menos intensidade em membro superior esquerdo. Reflexos osteotendíneos 4/4 em membro superior esquerdo e restante 2/4. Reflexo cutâneo-plantar em flexão bilateral. Presença de rigidez de nuca. Ausência de movimentos involuntários.
Apresentava lesões vesiculares com base eritematosa em dermátomo T12 à direita e em extremidades distais de membros inferiores, mais pronunciado em dorso de pé direito, algumas com conteúdo hemático. Ausência de sinais de sinovite ou de edema de membros inferiores.
Foi iniciada antibioticoterapia empírica com vancomicina, ceftriaxona, aciclovir e dexametasona por suspeita de meningite aguda e encefalite herpética.
A paresia assimétrica de membro superior esquerdo e a ausência de abdução do olho direito reforçam a suspeita de lesão estrutural do sistema nervoso central, incluindo AVC isquêmico ou hemorrágico (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/22032657/, https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28646329/).
Ausência de abdução do olho direito com rotação cefálica para a esquerda sugere comprometimento do nervo abducente (sexto par craniano). O sexto par craniano tem um longo trajeto até o músculo reto lateral. A depender da localização em que o nervo é afetado, outras estruturas neurológicas podem estar envolvidas (tabela 2). Hipertensão intracraniana, lesões isquêmicas, condições do espaço subaracnóideo (como meningite por tuberculose), sarcoidose, compressão por lesões expansivas e trombose do seio cavernoso podem lesionar essa estrutura (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/29724415/).
Irritação meníngea não infecciosa pode causar rigidez de nuca ao exame. Exemplos incluem meningite carcinomatosa/linfomatosa e hemorragia subaracnóidea (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/36472590/, https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34303412/).
As lesões no dermátomo T12 e disseminadas para as extremidades são altamente sugestivas de herpes zoster. O Centers for Disease Control and Prevention (CDC) define herpes zoster disseminado como a ocorrência de lesões fora do dermátomo de acometimento primário ou adjacente (https://www.cdc.gov/shingles/hcp/clinical-overview/index.html). Outra definição aceita pela literatura é a presença de mais de 20 lesões vesiculares fora do dermátomo primariamente acometido (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/39002859/). A caracterização de herpes zoster disseminado é relevante por indicar isolamento por aerossol.
Os déficits focais, a história súbita, o risco de trombose pela SAF e o risco de sangramento pelo uso da varfarina demandam a avaliação de um evento vascular como AVC (isquêmico ou hemorrágico) ou trombose venosa central. A paralisia do sexto par craniano e a hipertensão sistêmica sugerem hipertensão intracraniana secundária. O passo inicial é a tomografia computadorizada (TC) de crânio sem contraste.
Além de hemograma, eletrólitos, glicemia, função renal e hepática, os exames laboratoriais devem incluir coagulograma, dada a exposição à varfarina e o risco de complicações hemorrágicas.
Deve-se manter aciclovir intravenoso, considerando o diagnóstico de herpes zoster cutâneo disseminado com a possibilidade de envolvimento neurológico. Meningite bacteriana é improvável, mas é prudente manter antibioticoterapia empírica de amplo espectro (com ceftriaxona e vancomicina), sobretudo caso haja atraso na coleta do líquor ou persistência de dúvida diagnóstica.
Com escala de coma de Glasgow 8, rebaixamento após cefaleia, pressão arterial muito elevada e paralisia do sexto par, o tratamento empírico de hipertensão intracraniana na sala de emergência deve ser considerado (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/36802976/). Um bolus de salina hipertônica antes da TC, como medida transitória até imagem/neurocirurgia, é uma opção. Até a solução fazer efeito, é razoável hiperventilar brevemente (PaCO₂ 30–35 mmHg) como ponte, evitando hiperventilação prolongada (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/31211719/). Sedação profunda é apropriada, por reduzir a demanda metabólica cerebral e a pressão intracraniana.
Os exames laboratoriais iniciais mostraram:
- Hemoglobina 10,6 g/dL, VCM 82,9 fL, leucócitos e plaquetas normais.
- Creatinina 1,1 mg/dL, ureia 70 mg/dL, potássio 4,1 mEq/L e sódio 145 mEq/L.
- Gasometria: pH 7,35, pCO2 de 37 mmHg, bicarbonato de 22 mEq/L.
- PCR de 80 mg/dL.
- INR incoagulável.
Procedeu-se à elevação da cabeceira a 30° graus, centralização da cabeça e administração de salina hipertônica. Em seguida, foi solicitada vaga de UTI e TC sem contraste (figura 1).
A TC apresentava hiperdensidade compatível com sangramento em região subaracnoidea distribuída nas cisternas da base, cerebelo, tronco e região cortical bilateral (mais evidente à direita). Presença de hemoventrículo e hidrocefalia não comunicante determinando transudação liquórica. Apagamento de sulcos difusamente. Sem sinais de herniação. Sem desvio de linha média.
Considerando a piora do rebaixamento do nível de consciência, hemorragia subaracnoidea com graduação 4 na escala de Fisher e hidrocefalia, foi indicada intubação orotraqueal para proteção de via aérea e passagem de dispositivo de drenagem ventricular externa (DVE), ambos sem intercorrências.
Foi realizada a coleta de líquor via dispositivo de DVE. A análise demonstrou líquor turvo e xantocrômico, 0,6 células/mm³, proteína superior a 600 mg/dL, hemácias 7800/mm³ e demais exames no intervalo de normalidade, além de culturas para bactérias aeróbias negativas após incubação por cinco dias. Foi solicitada cultura para fungos, micobactérias e reação em cadeia de polimerase (PCR) para herpes zoster. Após o afastamento da hipótese de meningite bacteriana aguda, tendo em vista baixa celularidade e culturas de líquor negativas, a antibioticoterapia foi suspensa. Manteve-se o isolamento de contato e aerossol e a administração de aciclovir, em virtude do diagnóstico de herpes zoster disseminado.
O exame inicial na suspeita de hemorragia subaracnóidea (HSA) é a TC de crânio sem contraste, exame com sensibilidade próxima de 100% nas primeiras 6 horas após o início dos sintomas (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26797666/). Quando o exame é realizado após esse período, com resultado negativo ou duvidoso, indica-se punção lombar para análise do líquor, buscando xantocromia e/ou quantidade aumentada de hemácias (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/37212182/).
A ruptura espontânea de um aneurisma intracraniano é responsável por até 85% dos casos de HSA não traumática. Para investigar essa etiologia de HSA, recomenda-se a realização de angiotomografia (angioTC) ou angiografia cerebral por cateter (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/37212182/).
A sensibilidade da angioTC para detecção de aneurismas rompidos é de aproximadamente 97%, porém cai para cerca de 61% quando os aneurismas medem menos de 3 mm, por limitações de resolução espacial (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/37212182/). Diante de resultados negativos ou inconclusivos em pacientes com alta suspeita clínica, a angiografia cerebral por cateter é indicada. A angiografia por cateter também permite o tratamento endovascular por embolização (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/37212182/).
O manejo da HSA deve ocorrer em unidade de terapia intensiva, pelo alto risco de complicações neurológicas e sistêmicas (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/37212182/).
A abordagem inicial envolve:
- Avaliação do prognóstico com escalas padronizadas, como a escala de Fisher e a WFNS (tabela 3).
- Reversão de coagulopatias.
- Monitorização da pressão arterial: evitar tanto hipertensão quanto hipotensão, com redução gradual da pressão sistólica quando acima de 180 mmHg, com uso de anti-hipertensivos de meia-vida curta, por via intravenosa, mantendo a pressão arterial média acima de 65 mmHg (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/37212182/).
- Prevenção de complicações como a isquemia cerebral tardia e crises convulsivas.
Veja mais em "Diretriz de Hemorragia Subaracnóidea Aneurismática da AHA/ASA".
Sangramento maior associado ao uso de varfarina, como o caso da paciente, deve levar a três condutas:
- Suspensão imediata da varfarina.
- Administração de vitamina K intravenosa (5–10 mg em 15–30 minutos).
- Administração de complexo protrombínico de quatro fatores (1.500–2.000 unidades) ou plasma fresco congelado quando o complexo não estiver disponível, com avaliações laboratoriais frequentes, visando atingir um INR menor que 1,5 (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/11722425/, https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/27838137/, https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/23935011/).
Veja mais em "Intoxicação por Varfarina".
A interpretação do líquor em pacientes com HSA e suspeita de infecção do SNC é desafiadora. A presença de sangue no espaço subaracnoideo causa uma resposta inflamatória (meningite química) capaz de alterar parâmetros liquóricos de forma semelhante à infecção bacteriana. Essa resposta pode cursar com hiperproteinorraquia acentuada (frequentemente em torno de 3 g/L), discreta pleocitose, xantocromia e elevação discreta dos níveis de lactato, geralmente sem hipoglicorraquia (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32480074/).
Entre as ferramentas auxiliares nessa interpretação, destaca-se o índice celular, calculado pela fórmula:
Índice celular = (leucócitos no líquor ÷ hemácias no líquor) ÷ (leucócitos no sangue ÷ hemácias no sangue).
Esse índice avalia a proporção entre leucócitos e hemácias no líquor em comparação com o sangue periférico, sendo útil para distinguir inflamação estéril de infecção verdadeira em pacientes com hemorragia intracraniana. Valores superiores a 2–4 favorecem infecção bacteriana, enquanto índices próximos de 0,01 a 0,1 são compatíveis com resposta inflamatória estéril (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30708338/, https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28203777/). O índice deve ser interpretado junto à clínica, tendência temporal e culturas.
Outros dados relevantes para essa distinção são o lactato liquórico e a procalcitonina sérica. Em um estudo com pacientes com hemorragia intracraniana, aqueles com meningite apresentaram lactato liquórico médio de 5,7 mmol/L, significativamente mais alto do que os controles (3,6 mmol/L), sendo o ponto de corte de ≥ 4 mmol/L fortemente associado à ventriculite ou meningite associada aos cuidados de saúde (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28203777/).
A cultura do líquor continua sendo o exame mais importante para confirmar meningite bacteriana nesses casos, devendo ser coletada idealmente antes do início da antibioticoterapia. A ausência de crescimento bacteriano após um tempo de incubação adequado, associada à baixa celularidade corrigida e glicorraquia preservada, afasta o diagnóstico de meningite bacteriana aguda.
No caso apresentado, os resultados do líquor afastam meningite bacteriana aguda. A causa do rebaixamento é mais provavelmente a própria hemorragia intracraniana no contexto de intoxicação por varfarina. Causas estruturais para HSA, como aneurismas, ainda devem ser investigadas.
Foi realizada reversão da coagulopatia com vitamina K intravenosa associada à infusão de complexo protrombínico de 4 fatores. A paciente realizou uma angiografia cerebral que não encontrou malformação arteriovenosa, estenoses ateromatosas ou aneurismas intracranianos. Seios durais e veias intracranianas de calibre, opacificação e contornos preservados.
Considerando o contexto de HSA extensa associada a múltiplas áreas isquêmicas prévias por vasculite lúpica, foi introduzida fenitoína para profilaxia primária de crises convulsivas. Também foi iniciado nimodipino para prevenção de isquemia cerebral tardia.
Pela ausência de aneurismas intracranianos, levantou-se como hipótese etiológica principal da HSA a intoxicação por varfarina associada ou não à vasculite intracraniana.
Em 15% a 20% dos casos de HSA não traumática, a angiografia inicial não identifica aneurisma (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/1681340/, https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/37550334/). Uma nova angiografia em uma a duas semanas após o exame inicial pode revelar a etiologia em 4% a 7%, incluindo aneurismas não visualizados inicialmente e outras causas (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/39243972/, https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/23277373/, https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/35361576/). Quando o padrão do sangramento é perimesencefálico, repetir o exame costuma não acrescentar informação diagnóstica. A tabela 4 elenca diagnósticos diferenciais de HSA não aneurismático (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/1681340/, https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/37550334/, https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/39292929/).
A intoxicação cumarínica isolada é uma possibilidade para a HSA. Entretanto, deve-se sempre pesquisar lesões estruturais que representem uma área de fragilidade, facilitando o sangramento no contexto de coagulopatia.
Vasculite lúpica e vasculite pelo vírus varicela zoster (VZV) são causas possíveis de vasculopatia intracraniana que pode ter precipitado o sangramento. Ambas podem cursar com inflamação segmentar da parede arterial e predispor à hemorragia subaracnoidea não aneurismática. A tabela 5 elenca as principais causas de vasculite intracraniana secundária a doenças sistêmicas (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/39292929/).
Na investigação de vasculite do sistema nervoso central, a ressonância magnética (RM) deve ser realizada inicialmente. Habitualmente, evidencia múltiplos infartos em diferentes territórios cerebrais. Dependendo do achado, podem ser solicitadas angiorressonância ou angioTC, que avaliam grandes vasos, mas apresentam sensibilidade limitada para vasos de pequeno calibre (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/39292929/).
A angiografia convencional continua útil para demonstrar estreitamentos segmentares típicos ("beading") e auxiliar na escolha do local para biópsia, quando necessário. Contudo, esse achado não é específico (pode ocorrer em vasoconstrição cerebral reversível, por exemplo) e tem sensibilidade limitada para vasculite de pequenos vasos. A ressonância com imagem da parede do vaso (vessel wall imaging) complementa a avaliação ao mostrar espessamento/realce na parede vascular e diferenciar processos inflamatórios de ateroscleróticos ou traumáticos. Nenhum método isolado substitui a integração clínico-laboratorial e, quando indicada, a avaliação histopatológica (biópsia) (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/39292929/).
Os marcadores de atividade lúpica foram solicitados. Lactato desidrogenase, bilirrubinas, haptoglobina e complementos C3 e C4 normais. Anti-DNA negativo. Ausência de dismorfismo eritrocitário e proteinúria. Não havia lesões cutâneas típicas de lúpus, úlceras orais, alopecia, sinais de sinovite ou linfadenomegalias perceptíveis ao exame físico.
No décimo dia de internação, foi disponibilizado o resultado da análise molecular do primeiro líquor coletado, confirmando a positividade para o VZV. Esse achado corroborou a hipótese diagnóstica previamente aventada de infecção herpética disseminada com acometimento do sistema nervoso central, reforçando a manutenção do tratamento antiviral instituído desde o início da internação.
A angiografia realizada previamente foi reanalisada em busca de sinais de vasculite. O estudo demonstrou estenoses em artérias intracranianas com dilatações pós-estenóticas, além de serem identificados pontos de estreitamento extracraniano, cuja morfologia e distribuição eram compatíveis com vasculopatia associada ao VZV.
Com base nesses achados, foi feito diagnóstico presumido de vasculopatia por herpes zoster, sendo indicada a introdução de corticoterapia adjuvante ao tratamento em curso.
A vasculopatia pelo VZV é uma manifestação vascular causada pela reativação do vírus, causando inflamação de artérias intra ou extracranianas. Essa condição pode se manifestar como AVC isquêmico ou hemorrágico, aneurismas, dissecção arterial e trombose venosa. Acomete tanto pacientes imunocompetentes quanto imunocomprometidos (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26750127/, https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30247600/).
O exantema não é obrigatório, podendo ocorrer em somente 63% dos casos (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26750127/). O início dos sintomas neurológicos ocorre em média 4,2 meses após o quadro de herpes zoster, mas pode ocorrer simultaneamente às lesões cutâneas (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26750127/). Achados de imagem incluem lesões isquêmicas na ressonância, estenoses e dilatações pós-estenóticas em angiografia e espessamento arterial com realce no protocolo de imagem da parede do vaso (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26750127/).
Na circulação extracraniana, a vasculopatia por VZV pode desencadear arterite de células gigantes, com cefaleia intensa, sensibilidade do couro cabeludo, claudicação da mandíbula, polimialgia reumática e amaurose. O antígeno viral foi detectado em 74% das artérias temporais de pacientes diagnosticados com arterite de células gigantes. Outras arterites granulomatosas, como arterite de Takayasu, também podem estar ligadas à infecção por VZV (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26750127/).
No líquor, a pleocitose com predomínio linfomononuclear está presente em 67% dos casos e a detecção de anticorpo IgG anti-VZV é o marcador diagnóstico mais confiável. Em um estudo com pacientes que tiveram a vasculopatia confirmada, 93% apresentaram este anticorpo positivo, com uma razão soro/líquor de IgG anti-VZV reduzida, confirmando sua síntese intratecal (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26750127/). Por outro lado, apesar da pesquisa por metodologia de PCR ser muito específica, em somente 30% dos casos de vasculopatia por zoster o DNA viral é identificado no líquor, configurando a baixa sensibilidade do método.
O diagnóstico de vasculopatia por VZV pode ser perdido por quatro motivos principais (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26750127/, https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30247600/):
- Ausência de exantema em cerca de um terço dos pacientes.
- Análise bioquímica e citológica do líquor normal em um terço dos pacientes.
- Atraso médio de 4,2 meses entre o herpes zoster e os sintomas neurológicos.
- Frequente ausência de DNA de VZV no líquor.
O tratamento de escolha da vasculopatia por VZV é aciclovir 10 a 15 mg/kg a cada 8 horas por 14 dias. Em casos recorrentes, pode ser necessário um segundo ciclo de aciclovir intravenoso seguido de terapia oral prolongada (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30247600/). O uso de corticoides é comum, utilizando-se habitualmente prednisona 1 mg/kg por cinco dias.
Alguns pontos de aprendizagem sobre o caso que você não pode esquecer:
- O sexto par craniano tem um longo trajeto até o músculo reto lateral. A depender da localização em que o nervo é afetado, outras estruturas neurológicas podem estar envolvidas (tabela 2).
- A investigação inicial da HSA deve começar com TC de crânio sem contraste, altamente sensível nas primeiras 6 horas. Após esse período, se o resultado for negativo ou duvidoso, indica-se punção lombar para análise do líquor.
- O lactato no líquor, a procalcitonina sérica e o índice celular auxiliam para o diagnóstico concomitante de meningite ou ventriculite em pacientes com HSA. Contudo, a identificação do agente por meio de culturas ou métodos moleculares permanece o padrão-ouro.
- Em 15% a 20% das HSA não traumáticas, não se identifica aneurisma na primeira angiografia. Nesses casos, recomenda-se repetir o exame e investigar causas não aneurismáticas.
- A vasculopatia por VZV acomete pacientes imunocompetentes e imunocomprometidos, com manifestações intracranianas como ataques isquêmicos transitórios, AVC isquêmico ou hemorrágico, aneurismas, dissecção arterial e trombose venosa.
- Somente a ausência simultânea de IgG anti-VZV e DNA viral no LCR permite descartar a vasculopatia por VZV com boa acurácia.
Aproveite e leia:
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Consenso de Via Aérea Fisiologicamente Difícil
Pelo menos um evento adverso grave ocorre em 45% das intubações de pacientes críticos. A alta incidência de complicações, mesmo que a intubação seja feita com sucesso na primeira tentativa, levou à caracterização da “via aérea fisiologicamente difícil”. Esse conceito representa pacientes em condições fisiopatológicas que elevam significativamente a probabilidade de eventos adversos, por mais que a anatomia seja “fácil”. Um painel de especialistas publicou recomendações sobre via aérea fisiologicamente difícil seguindo o método Delphi em 2024. Esse tópico revisa esse documento.
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Intercorrências na Hemodiálise
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Uso de Drogas Vasoativas e Albumina na Cirrose
Pacientes com cirrose podem ter complicações que necessitam de tratamento com drogas vasoativas (DVA) e albumina. Em janeiro de 2024, a American Gastroenterological Association (AGA) publicou uma atualização sobre o uso de DVA e albumina nesse contexto. Neste tópico são revisadas as recomendações para as principais descompensações de cirrose.