POCUS - Uso da Ultrassonografia no Diagnóstico do Choque
O choque circulatório é uma condição desafiadora no ambiente do pronto-socorro e terapia intensiva. O uso do point of care ultrasound (POCUS) é capaz de auxiliar no seu diagnóstico e manejo. Esta edição revisa a sua aplicação neste cenário.
Diagnóstico diferencial do choque circulatório pelo POCUS
O choque é uma condição de falência circulatória aguda, caracterizada por oferta e/ou utilização inadequadas de oxigênio pelos tecidos, insuficientes para atender às demandas metabólicas, o que culmina em disfunção celular e orgânica [1].
Os sinais clínicos da má perfusão tecidual decorrentes do choque são acessadas tradicionalmente através dos sistemas [2]:
- Cutâneo: Pele fria e pegajosa, tempo de enchimento capilar prolongado, livedo reticular ou cianose.
- Cardiovascular: Taquicardia, hipotensão ou elevação do lactato.
- Renal: Redução de débito urinário.
- Neurológico: Rebaixamento do nível de consciência e desorientação.
Apesar de frequentemente associada ao choque circulatório, a redução da pressão arterial pode ser um achado tardio, o que pode retardar o seu reconhecimento em tempo hábil [2].
As etiologias de choque podem ser agrupadas conforme seu perfil hemodinâmico em quatro grupos determinados historicamente pela avaliação do cateter de artéria pulmonar (tabela 1). É importante destacar que o choque distributivo apresenta débito cardíaco preservado ou aumentado, o que é útil na sua diferenciação dos outros perfis de choque [2].
A integração sistemática do POCUS à avaliação clínica proporciona maior acurácia na investigação etiológica do choque do que o emprego isolado do exame físico e exames laboratoriais [3-5]. A Society of Critical Care Medicine (SCCM) recomenda o uso do ultrassom (USG) na abordagem de pacientes críticos, com choque séptico ou choque cardiogênico [6].
Os achados ultrassonográficos presentes em cada tipo de choque são apresentados na tabela 2.
Abordagem sistemática do POCUS para avaliação do choque (RUSH)
Protocolos ultrassonográficos foram desenvolvidos para o diagnóstico do choque indiferenciado e, dentre eles, o Rapid Ultrassound in SHock (RUSH) é um dos mais amplamente conhecidos (veja vídeo 2) (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/19945597/).
O protocolo RUSH consiste na avaliação de três segmentos de forma análoga a um sistema hidráulico:
- Bomba
- Tanque
- Canos
Durante cada etapa do protocolo são obtidas informações que se somam para auxiliar na identificação da etiologia do choque. As janelas e cortes ultrassonográficos do protocolo RUSH foram detalhados neste vídeo.
Bomba
A primeira etapa do protocolo consiste no exame cardíaco direcionado, realizado com o probe setorial no modo B do USG, nas mesmas janelas utilizadas para avaliação ventricular esquerda, direita e pericárdica. Veja mais em "Avaliação do Ventrículo Esquerdo pelo Ultrassom (POCUS)" e "POCUS: Avaliação do Ventrículo Direito, Derrame Pericárdico e Tamponamento Cardíaco".
Três perguntas devem ser respondidas nesta etapa:
- Existe derrame pericárdico provocando tamponamento cardíaco?
- Como está a contratilidade global ventricular esquerda?
- Existe sobrecarga do ventrículo direito?
Com a primeira pergunta é possível afastar ou mesmo confirmar o diagnóstico de tamponamento cardíaco. A segunda visa identificar hipocontratibilidade cardíaca, que corrobora para o diagnóstico, ou na sua ausência, fala contra a presença de choque cardiogênico. Um coração hipercinético pode estar presente em cenários de choque hipovolêmico, distributivo ou obstrutivo. A terceira pergunta visa identificar sinais de sobrecarga de ventrículo direito, e raramente a visualização de trombos em trânsito, presentes no tromboembolismo pulmonar.
Tanque
A segunda etapa foca em determinar como está o volume intra e extravascular do sistema. Pode-se utilizar o probe setorial, ou o convexo.
Deve-se avaliar três compartimentos nesta etapa:
- A veia cava inferior e a veia jugular interna
- Cavidade abdominal ou pleural em busca de líquido livre
- Pulmões.
Em pacientes em ventilação espontânea, na janela subcostal, a presença de uma veia cava dilatada com > 2,1 cm e com variação respiratória < 50% sugere aumento das pressões de átrio direito que podem ocorrer no choque obstrutivo e cardiogênico. Já no choque hipovolêmico, a veia cava se apresenta colapsada < 1,5 cm e com variação > 50%. Choques distributivos podem se apresentar com a cava com variação normal, dilatada ou colabada.
A pesquisa de líquido livre abdominal começa pelo quadrante superior direito, analisando o espaço hepatorrenal em busca de líquido. Neste mesmo tempo o probe é deslizado 1 a 2 espaços intercostais superiormente para avaliar a presença de líquido subdiafragmático e na cavidade pleural. Em seguida, avalia-se o quadrante superior esquerdo, avaliando o espaço periesplênico e da mesma maneira, são pesquisados líquido infra diafragmático e líquido pleural ipsilateral. Por fim, avalia-se o espaço retovesical ou retovaginal.
A avaliação dos pulmões visa identificar a presença de pneumotórax através da ausência de deslizamento pleural somado as linhas As ou a presença do ponto pulmonar. A congestão pulmonar se manifesta por linhas Bs difusas e bilaterais, enquanto linhas Bs localizadas sugerem infecções pulmonares.
Canos
A última etapa do protocolo RUSH consiste na avaliação dos vasos. É necessário a utilização do probe linear na análise das veias profundas, enquanto o setorial ou convexo na avaliação da aorta.
Nesta etapa deve-se:
- Avaliar a presença de aneurisma de aorta ou sinais de dissecção
- Procurar sinais de trombose venosa profunda.
Na avaliação da aorta, é inicialmente avaliada a porção ascendente através da janela apical quatro câmaras e da janela supraesternal. Em seguida, avalia-se a aorta descendente partindo do epigástrio até a bifurcação das ilíacas obtendo imagens tanto no eixo transversal quanto longitudinal. Deve-se realizar a medida do diâmetros dos segmentos no eixo transversal. Valores > 3 cm são considerados anormais. Na presença de dissecção de aorta, o modo color doppler pode revelar dois fluxos distintos entre a luz verdadeira e a luz falsa.
A avaliação das veias profundas incluem a compressão de 3 regiões em ambos os membros inferiores: na topografia da veia femoral comum logo abaixo do ligamento inguinal, na confluência da safena e a divisão da veia femoral superficial e veia femoral profunda e, por último, na fossa poplítea superiormente até a sua trifurcação.
Apesar do protocolo didaticamente se apresentar de forma sequencial, os operadores podem alterar sua ordem conforme a necessidade e maior suspeita clínica. Ao fim, é possível organizar os achados em perfis prováveis de cada categoria do choque. A tabela 3 demonstra o protocolo RUSH e organiza os tipos de choque conforme os achados encontrados.
Integral velocidade-tempo e débito cardíaco
A avaliação do débito cardíaco auxilia no diagnóstico, estratificação e manejo do choque. O ultrassom à beira leito pode ser uma ferramenta utilizada para calculá-lo de forma não invasiva e com boa correlação com os métodos invasivos baseados em termodiluição como o catéter de artéria pulmonar (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28595621/, https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/36224055/, https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/31581196/)
O débito cardíaco é determinado pela seguinte fórmula:
- DC = volume sistólico x frequência cardíaca.
O volume sistólico é a quantidade de sangue ejetado pelo ventrículo esquerdo em cada batimento cardíaco. Este sangue será ejetado através da via de saída do ventrículo esquerdo (VSVE) e a própria aorta, uma estrutura cilíndrica. Se todo o volume de sangue ejetado em determinado batimento pudesse ser calculado, portanto, seria o mesmo que o volume calculado de um cilindro.
Para calcular o volume sistólico, deve-se utilizar referências anatômicas da saída do ventrículo esquerdo como partes de um cilindro. Esta calculadora auxilia no cálculo do volume sistólico.
Área da base do cilindro
Para calcular a área da base do cilindro, no corte paraesternal eixo longo, é medido o diâmetro interno da via de saída do ventrículo esquerdo imediatamente antes das valvas aórticas, no seu momento de maior abertura na sístole. A ferramenta zoom no ultrassom pode ajudar a tornar a medida mais precisa, já que um erro de aferição pode superestimar o valor encontrado. Para o cálculo da área da base, o diâmetro obtido é dividido por dois.
Na dificuldade de mensuração do diâmetro da via de saída ou para agilidade do cálculo, pode-se assumir que a via de saída do ventrículo esquerdo possui 2 cm, um valor médio em adultos (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24451180/).
Altura do cilindro
Para calcular a altura do cilindro, é possível utilizar a integral da velocidade-tempo (IVT ou VTI em inglês). Esta medida é possível ser estimada através do doppler pulsado na análise de um batimento cardíaco, onde a área do gráfico obtida no aparelho de ultrassom é a distância percorrida pelo sangue - análoga a altura do cilindro (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/36224055/).
Inicialmente obtém-se a janela apical, no corte 5 câmaras. Neste momento utiliza-se o modo color doppler para auxiliar a encontrar a direção do fluxo sanguíneo na via de saída do ventrículo esquerdo. Em seguida, utiliza-se o doppler pulsado, direcionando o cursor para via de saída do ventrículo esquerdo, com o volume de amostra 3 -10 mm abaixo do anel valvar aórtico, no ventrículo esquerdo (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30282592/). Serão formadas uma série de curvas correspondentes ao doppler pulsado do fluxo de sangue ejetado em cada batimento.
No aparelho de ultrassom será possível contornar a área das curvas formadas pelo modo doppler pulsado manualmente (ou automaticamente em alguns aparelhos). Esta área será utilizada pelo aparelho de ultrassom para calcular automaticamente em centímetros a integral velocidade-tempo. O valor final será mostrado na tela como “Integral velocidade-tempo da via de saída do ventrículo esquerdo” (IVT VSVE ou LVOT VTI em inglês).
As curvas geradas através do modo doppler pulsado são muito sensíveis à movimentação e alterações no ângulo insonado, o que pode ocasionar alterações significativas no seu resultado. Uma curva é considerada adequada quando apresenta uma parte interna mais escura com o contorno mais claro e nela está presente a espícula do fechamento da valva aórtica logo ao término da curva.
Com as medidas do cilindro obtidas, é possível calcular o volume sistólico através da multiplicação da área da base pela altura. A figura 5 demonstra o cálculo da ITV da VSVE e o cálculo do volume sistólico.
Cálculo do débito cardíaco
Como o débito cardíaco é calculado pela fórmula DC = volume sistólico x frequência cardíaca, agora basta substituir o volume sistólico pelos valores já obtidos anteriormente e multiplicar pela frequência cardíaca.
DC = π x (diâmetro da via de saída)² x IVT x frequência cardíaca
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2
Por fim, é possível calcular o índice cardíaco ao normalizar o débito cardíaco pela superfície corpórea em m² (IC=DC/SC) aumentando a acurácia da função cardíaca.
Os valores de referência das variáveis em condições fisiológicas são de aproximadamente (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34044105/,https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33144167/,https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/25559474/):
- Integral velocidade-tempo (IVT): 20 +/- 4 cm
- Volume sistólico (VS): 60 - 90 ml
- Débito cardíaco (DC): 4 - 8 L/min
- Índice cardíaco (IC): 2.2 - 4 L/min/m²
A integral da velocidade pelo tempo está diretamente relacionada, na maioria das vezes, ao débito cardíaco. Por esse motivo, é frequentemente calculada isoladamente.
Alguns cenários, no entanto, exigem atenção, como a presença de dilatação da via de saída do ventrículo direito, onde pode ocorrer subestimação do débito cardíaco. Da mesma maneira, pacientes bradicárdicos ou taquicárdicos (FC > 140 bpm) podem ter seu débito cardíaco subestimado ou superestimado respectivamente (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/7860918/).
Diagnóstico diferencial do choque através da integral velocidade tempo
Além dos achados estruturais e funcionais obtidos pelo POCUS para o diagnóstico diferencial do choque, é possível integrar o débito cardíaco estimado pela IVT, permitindo uma avaliação hemodinâmica mais precisa (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/36001157/, https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26283755/).
A detecção de uma IVT e DC normais ou aumentados, presentes no choque distributivo em fase inicial, pode auxiliar na diferenciação dos outros tipos de choque circulatório. Seus valores podem complementar as demais avaliações do choque através do POCUS, como exemplificado abaixo:
Exemplo 1:
Em um paciente com evidência de hipocontratilidade inferida através da análise do POCUS básico, a presença de um DC normal, pode sugerir que esta alteração seja crônica e já esteja compensada. Por outro lado, no mesmo cenário, um DC reduzido reforça a hipótese de componente cardiogênico como etiologia do choque.
Exemplo 2:
Um paciente com coração hiperdinâmico na avaliação do POCUS pode sugerir a necessidade de administração de fluidos. No entanto, a presença de uma IVT e DC adequados sugerem que o problema é provavelmente a vasoplegia. Já um DC reduzido, principalmente aliado a parâmetros de fluidotolerância e fluidoresponsividade, reforçam o benefício da administração de fluidos intravenosos (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/35085589/). Veja mais em "Fluidos, Fluido-Responsividade e Fluido-Tolerância".
Apesar dessa avaliação possibilitar a classificação e manejo de grande parte dos casos de choque, alguns cenários ainda são desafiadores como a presença de valvopatias e choques mistos, que exigirão avaliações mais avançadas e especializadas.
O fluxograma 1 resume a abordagem ao choque baseada nos achados do ultrassom, incluindo a integral tempo-velocidade e o débito cardíaco.
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