Manejo Medicamentoso no Perioperatório
Em agosto de 2022, ocorreu o congresso da European Society of Cardiology (ESC) e foi apresentada a nova diretriz de avaliação perioperatória para cirurgias não cardíacas [1]. Vamos aproveitar para revisar o manejo medicamentoso no perioperatório e comentar as principais atualizações.
Betabloqueadores
Os betabloqueadores (BBQ) reduzem o consumo de oxigênio no miocárdio ao reduzir a força contrátil e a frequência cardíaca. Estas propriedades explicam por que os betabloqueadores têm sido frequentemente testados em pacientes submetidos às cirurgias não cardíacas (CNC).
Os estudos iniciais sugeriram que essa classe seria capaz de reduzir a morbimortalidade cardiovascular no perioperatório, porém esse efeito não foi confirmado por trabalhos posteriores [2-4]. Além disso, os estudos encontraram uma possível associação com maior incidência de bradicardia e hipotensão.
O estudo POISE randomizou 8.351 pessoas, a maioria de risco intermediário de complicações, para receber metoprolol ou placebo [5]. O metoprolol era iniciado 2 a 4 horas antes da cirurgia na dose de até 400 mg e mantido por até 30 dias. O desfecho primário era infarto agudo do miocárdio (IAM) não fatal, parada cardíaca não fatal e mortalidade cardiovascular. Os resultados mostraram uma menor incidência do desfecho no grupo que utilizou BBQ. No entanto, o grupo do metoprolol apresentou maior incidência de AVC e mortalidade global (hazard ratio 2.17, 95% IC = 1.26-3.74; p=0.0053), além de alta incidência de hipotensão e bradicardia clinicamente significativas.
Uma metanálise averiguou se não somente o uso de BBQ, mas o controle rígido da frequência cardíaca (FC), poderia levar a melhores desfechos [6]. Quando os autores dividiram os pacientes em dois grupos com base na FC máxima, notou-se que os trabalhos cuja FC máxima estimada foi menor que 100 bpm estavam associados à cardioproteção (odds ratio = 0,23; 95% CI = 0,08-0,65; p = 0,005) enquanto os trabalhos em que a FC máxima estimada era maior que 100 bpm não demonstraram cardioproteção (odds ratio = 1,17; 95% CI = 0,79-1,80; p= 0,43).
A Diretriz de Perioperatório da ESC afirma que o início rotineiro de BBQ não é recomendado (grau de recomendação III, nível de evidência A). O documento também indica que o uso de BBQ antes de CNC pode ser benéfico em pacientes com alto risco cardiovascular ou que estão se submetendo a intervenções cirúrgicas de alto risco, incluindo cirurgias vasculares (grau de recomendação IIb, nível de evidência A).
Quando o BBQ é iniciado em pacientes com doença arterial coronariana (DAC), devemos considerar o uso de atenolol ou bisoprolol como primeira escolha. A Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) orienta que, ao iniciar um BBQ, deve-se realizar titulação progressiva até FC de 55 a 65 bpm e evitar hipotensão (pressão arterial sistêmica < 100 mmHg) (grau de recomendação IIa, nível de evidência B).
Em pacientes com uso crônico da medicação, recomenda-se mantê-la no perioperatório, pois há aumento da mortalidade se houver retirada nesse período (grau de recomendação I, nível de evidência B).
Inibidores do sistema renina-angiotensina-aldosterona
Dados sobre o uso no perioperatório dos inibidores do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) são inconclusivos. A maioria dos estudos sugere que o uso continuado está associado a um maior risco de hipotensão perioperatória, uso de vasopressores e inotrópicos. Sabe-se que hipotensão intraoperatória e sua duração estão associados a danos teciduais, incluindo lesão renal, injúria miocárdica e AVC.
O estudo PREOP-ACEI randomizou 275 pacientes para manutenção ou suspensão da dose de IECA pré-operatória [7]. Os pacientes randomizados para a omissão da última dose antes da cirurgia apresentaram menos hipotensão intraoperatória (55% vs. 95/138 69%) e menor chance de precisarem de vasopressores. Por outro lado, a hipertensão pós-operatória foi mais frequente no grupo que omitiu a dose.
A coorte observacional VISION estudou 4802 pacientes submetidos à CNC que utilizavam um IECA ou bloqueador do receptor da angiotensina (BRA) [8]. Os pesquisadores avaliaram se a descontinuação destes medicamentos nas 24 horas antes da cirurgia interferia em desfechos clínicos. Os resultados mostraram um menor risco de hipotensão intraoperatória (risco relativo ajustado 0,80; IC 95% = 0,72-0,93; p=0,001) e a uma redução no desfecho composto que consiste em mortalidade por todas as causas, AVC e IAM (risco relativo ajustado 0,82; IC 95% = 0,70-0,96; p=0,01).
Dados da revisão sistemática PROSPERO não mostraram associação entre a suspensão de IECA/BRA na manhã da cirurgia e mortalidade ou evento cardiovascular maior [9]. No entanto, confirmou que suspender a medicação teve associação com menos hipotensão intraoperatória (odds ratio 0,63; 95% IC = 0,47-0,85). Se um IECA/BRA for descontinuado antes da CNC, ele deve ser reiniciado o mais rápido possível a fim de evitar a omissão involuntária a longo prazo.
Em pacientes sem insuficiência cardíaca (IC), a ESC recomenda considerar a suspensão do inibidor do SRAA no dia da cirurgia para evitar hipotensão perioperatória (grau de recomendação IIa, nível de evidência B).
Inibidores do co-transportador de sódio-glicose-2 (SGLT-2)
O uso de inibidores do co-transportador de sódio-glicose-2 (iSGLT-2) está aumentando devido aos benefícios cardiovasculares para pacientes com diabetes mellitus tipo 2 (DM2), IC e insuficiência renal (veja o tópico do guia sobre ISGLT-2).
A cetoacidose diabética euglicêmica (CADE) é uma complicação rara, porém grave dessa classe. A incidência de CADE não aumentou significativamente com os iSGLT-2 nos ensaios clínicos randomizados, porém vários relatos de casos indicam que essa complicação pode ocasionalmente ocorrer após CNC [10]. O Food and Drug Administration (FDA) recomenda a interrupção de iSGLT-2 por pelo menos 3-4 dias antes da cirurgia programada e vigiar sintomas relacionados a CADE.
A ESC recomenda considerar a interrupção do iSGLT-2 por pelo menos 3 dias antes de cirurgias não cardíacas de risco intermediário e alto (grau de recomendação IIa, nível de evidência C).
Veja um resumo sobre o manejo das medicações no perioperatório na tabela 1.
Aproveite e leia:
Febre de Origem Indeterminada
Febre de origem indeterminada (FOI) é reconhecida há mais de um século. Ao longo dos anos sua definição já foi revisitada algumas vezes. Independente dessas definições, FOI deve ser considerada quando um paciente apresenta febre sem uma causa clara, mesmo com investigação hospitalar ou ambulatorial adequada, por um período de tempo suficiente para excluir febre autolimitada. Em fevereiro de 2022, foi lançada uma revisão no New England Journal of Medicine sobre o tema e trazemos os principais pontos aqui:
Profilaxia de Endocardite Infecciosa
A profilaxia de endocardite infecciosa após procedimentos dentários é uma prática recomendada pelas principais sociedades de cardiologia - European Society of Cardiology (ESC) de 2015 e American Heart Association (AHA) de 2020. Essas recomendações são controversas, pois não existem evidências robustas da associação de endocardite com procedimentos dentários e da eficácia da profilaxia antimicrobiana. Um estudo publicado em agosto de 2022 no Journal of the American College of Cardiology (JACC) abordou esses dois pontos. Vamos ver o que a nova evidência acrescenta e revisar o tema.
Ventilação Não Invasiva (VNI)
A ventilação mecânica invasiva é essencial no manejo de formas graves de insuficiência respiratória. Contudo, está associada às complicações da intubação e da própria ventilação invasiva. Nesse contexto surge a ventilação não invasiva (VNI), uma tentativa de manejar insuficiência respiratória sem esses riscos. Essa revisão traz as aplicações de VNI, assim como a evidência sobre seu uso, complicações e aspectos técnicos.
Abordagem à Elevação de Enzimas Hepáticas
Marcadores de lesão e função hepática são exames comuns dentro e fora do hospital. Aproveitando uma revisão recente, vamos aprofundar no assunto.
Asma e Uso de Beta Agonistas de Curta Ação
É comum os pacientes recorrerem a beta agonistas de curta ação (SABA) em uma crise de asma. Porém, confiar apenas nos SABA não é uma boa opção. Um estudo apresentado na conferência da American Thoracic Society e publicado no New England Journal of Medicine acrescentou evidências nesse tema. Vamos ver os achados e rever o tratamento inicial de asma.