Nova Diretriz de Candidíase Invasiva

Criado em: 07 de Abril de 2025 Autor: Raphael Gusmão Barreto Revisor: Nordman Wall

A incidência de candidíase invasiva em pacientes hospitalizados é de 1.565.000 casos por ano no mundo e a mortalidade é de 63% [1]. O Brasil é o terceiro país com maior prevalência da doença, apesar dos avanços em terapia antifúngica. Uma nova diretriz sobre diagnóstico e manejo dessa condição da International Society for Human and Animal Mycology (ISHAM) foi publicada em 2025 [2]. Este tópico revisa suas principais recomendações.

Suspeita e fatores de risco

Candidíase invasiva é o termo utilizado para a infecção por Candida spp. na corrente sanguínea (candidemia) e/ou em sítios profundos (peritonite, abscesso intra-abdominal, endocardite, osteomielite e meningite) [3]. A candidemia isolada é a forma mais comum de apresentação clínica (39%), seguida da infecção de um sítio profundo sem candidemia (32%) e da presença das duas entidades juntas (28%) [4. 5].

As duas origens principais da candidíase invasiva são a translocação intestinal e as infecções de corrente sanguínea associadas a cateteres. A translocação intestinal é comumente proporcionada por fatores como neutropenia, mucosite e manipulação cirúrgica, por exemplo. No Brasil, as espécies de Candida spp. mais comuns são [6]:

  1. Candida albicans: 37%
  2. Candida parapsilosis: 22% 
  3. Candida tropicalis: 18% 
  4. Nakaseomyces glabratus (antiga Candida glabrata): 9%
  5. Pichia kudriavzevii (antiga Candida krusei, intrinsecamente resistente a fluconazol): 2% 

As espécies C. albicans, C. parapsilosis e C. tropicalis são comumente sensíveis a fluconazol, mas há relatos de surtos de C. tropicalis resistentes. Já a N. glabratus (antiga C. glabrata) é frequentemente resistente a fluconazol. Além disso, a P. kudriavzevii (antiga Candida krusei) é intrinsecamente resistente ao fluconazol [3].

Tabela 1
Fatores de risco para candidíase invasiva
Fatores de risco para candidíase invasiva

A suspeita de candidíase invasiva pode ser difícil devido à falta de sinais e sintomas específicos para a condição. Exames como fundoscopia e ecocardiograma podem auxiliar na investigação [2].  A tabela 1 descreve os fatores de risco mais associados com candidíase invasiva e a tabela 2 seleciona algumas apresentações clínicas.

Tabela 2
Síndromes de candidíase invasiva
Síndromes de candidíase invasiva

O Candida Score é um instrumento para auxiliar na avaliação do risco de pacientes não-neutropênicos em desenvolver candidemia. Os seguintes fatores são considerados: 

  • Cirurgia abdominal = 1 ponto
  • Nutrição parenteral total = 1 ponto
  • Colonização por candida em múltiplos sítios anatômicos = 1 ponto
  • Sepse ou choque séptico (segundo a definição atual) = 2 pontos

Um escore com ≥ 3 pontos conseguiu predizer candidemia com sensibilidade de 81% e especificidade de 74% [2, 7]. Porém, a utilidade da ferramenta tem sido questionada, principalmente após os achados do Empiricus Trial. Este foi um ensaio clínico duplo-cego multicêntrico em que pacientes não-neutropênicos com sepse nova e múltiplos fatores de risco para candidemia foram randomizados para receber micafungina empiricamente ou placebo. O desfecho primário de sobrevida livre de doença fúngica foi semelhante entre os dois grupos. Além disso, no subgrupo de pacientes com Candida Score ≥ 3, também não houve diferença ao se iniciar antifúngico empiricamente [8].

A diretriz não recomenda o uso específico do Candida score ou outro escore clínico para predizer risco de candidemia, pois não há escore com evidência robusta e reproduzível para ser usado nesse cenário [2]. Contudo, considerando a alta mortalidade associada à candidemia, a ISHAM sugere considerar tratamento empírico para todo paciente com fator de risco para candidemia com:

  • Choque séptico ou
  • Deterioração clínica a despeito do uso de antibioticoterapia de amplo espectro. 

Diagnóstico

O padrão-ouro para diagnóstico de candidíase invasiva é a identificação do microorganismo em cultura de sítio estéril (sangue ou líquido seroso ou biópsia de tecido). A hemocultura é o exame mais utilizado e costuma ser positiva em somente 40% dos casos de candidemia, com um tempo de crescimento médio de 2 a 3 dias [2]. Existem recomendações específicas para aumentar o rendimento do exame [2, 9, 10].

  • Colher em frasco de aeróbio convencional ou em frasco de MycoF-BD (aumenta sensibilidade para N. glabratus).
  • Idealmente, 60 mL de sangue por coleta, distribuídos em 6 frascos de hemocultura com 10 mL de sangue cada.
  • Manter frascos de hemocultura incubados por 5 dias.

Métodos moleculares podem ser utilizados para diagnóstico, porém nenhum possui forte recomendação para uso e o papel no manejo clínico ainda é incerto [2].

O 1-3-β-d-glucano é um biomarcador fúngico, não específico para Candida, desenvolvido para auxílio no manejo das doenças fúngicas invasivas. Possui alto valor preditivo negativo para candidíase invasiva (>99%), porém o valor preditivo positivo não ultrapassa 31%, mesmo em pacientes selecionados de alto risco [11]. A diretriz não recomenda que o 1-3-β-d-glucano seja utilizado para tomada de decisão de início de antifúngico empírico, por ausência de benefício em ensaios clínicos [8, 12].  Com dosagens seriadas (a primeira coletada antes do início do antifúngico) e em associação com procalcitonina, pode ser utilizado para decidir sobre a suspensão de tratamento e para estratificação prognóstica [2]. É pouco disponível no Brasil, limitando seu uso. Veja mais em "Biomarcadores de infecções fúngicas". 

Investigação de complicações

Após o diagnóstico, deve-se investigar complicações associadas à candidíase invasiva. A ISHAM recomenda realizar ecocardiograma em pacientes com sintomas de endocardite ou fatores de risco (como doença valvar, dispositivo cardíaco implantável e candidemia persistente) [2]. Esta recomendação se ampara em estudos observacionais que relatam incidência de endocardite entre 1,9% a 11,5% após episódios de candidemia. Os principais fatores de risco foram a presença de valva protética ou dispositivos cardíacos implantáveis. 

O rastreio de acometimento ocular em pacientes com candidemia tem sido alvo de controvérsia. A ISHAM recomenda a realização de fundoscopia para pacientes com candidemia e um dos seguintes:

  • Sinais ou sintomas oculares
  • Imunossuprimidos (em neutropênicos, aguardar recuperação leucocitária)
  • Candidemia persistente (hemoculturas persistentemente positivas após 48 horas de antibióticos)
  • Pacientes incapazes de verbalizar suas queixas.

Esta nova orientação também se encontra nas recomendações da American Academy of Ophthalmology para rastreio de endoftalmite por Candida [13]. No entanto, outras diretrizes atuais dos Estados Unidos, Europa e Austrália mantêm a recomendação de realizar fundoscopia na primeira semana para todos os pacientes com candidemia [14, 15, 16].

Tratamento

As equinocandinas são as drogas de escolha para o tratamento de candidíase invasiva [2].

Uma revisão sistemática encontrou que o uso de equinocandinas esteve associado à redução da mortalidade, quando comparado com anfotericina B e fluconazol [17]. As equinocandinas aprovadas para este uso são: anidulafungina [18], micafungina [19], caspofungina [20] e rezafungina [21, 22]. A tabela 3 resume as drogas, doses e ajustes. 

Tabela 3
Antifúngicos usados no tratamento de candidíase invasiva
Antifúngicos usados no tratamento de candidíase invasiva

No SUS, a anidulafungina é a equinocandina disponibilizada pelo Ministério da Saúde e pode ser solicitada com o preenchimento desse formulário. Quando não há equinocandina disponível no hospital, fluconazol, voriconazol ou anfotericina B lipossomal são opções [2]. Fluconazol pode ser considerado em pacientes estáveis, sem exposição prévia à droga e em hospitais com baixa prevalência de resistência a azólicos.

Para candidemias sem invasão de sítios profundos, o tratamento deve ser mantido por 14 dias após a documentação do clareamento da candidemia (três hemoculturas negativas consecutivas). Após o início do tratamento, a diretriz sugere que as hemoculturas devem ser coletadas diariamente até não haver mais crescimento de fungos. Em concordância, a Sociedade Americana de Infectologia (IDSA) sugere que a coleta de hemoculturas seja diária ou a cada 48 horas para documentar o clareamento da candidemia [14].

Fluxograma 1
Manejo de candidemia
Manejo de candidemia

O fluxograma 1 resume a escolha do tratamento e demais condutas no manejo de candidemia. Outras possibilidades de antifúngicos são:

  • Anfotericina B: a maioria das espécies de Candida spp. são sensíveis. Os efeitos adversos, principalmente nefrotoxicidade, limitam o uso, particularmente em pacientes graves. Está reservada para terapia de segunda linha ou de resgate (quando não há resposta às equinocandinas) [2].
  • Fluconazol: atualmente, considerado terapia de descalonamento devido ao aumento de prevalência no mundo de cepas de Candida com resistência a azólicos. Pode ser utilizado em situações em que as equinocandinas ou anfotericina não estão disponíveis ou há contraindicação [2].

A remoção de cateter venoso central é recomendada e está associada a menor mortalidade [14, 17]. A ausência de controle adequado de foco no manejo da candidíase invasiva é associada a maior mortalidade intra-hospitalar e em 30 dias [23, 24, 25]. A diretriz também recomenda que todos os casos de candidíase invasiva sejam avaliados por um infectologista.

O tratamento farmacológico da candidíase intra-abdominal segue os mesmos princípios da candidemia, porém há poucos estudos de boa qualidade sobre o tema [2]. O tempo de tratamento deve considerar se o paciente foi submetido a controle de foco com drenagem ou desbridamento adequado [14].

Quando há acometimento ocular, o tratamento sistêmico com equinocandinas na coriorretinite previne a evolução para endoftalmite e outras complicações, com bons resultados. No entanto, nos casos de endoftalmite, a primeira linha de tratamento é com fluconazol ou anfotericina B lipossomal, pois as equinocandinas possuem baixa penetração no vítreo [2]. Apesar do tratamento, a resposta clínica é baixa, com persistência dos sintomas visuais em metade dos pacientes [2].

Gota: Diagnóstico e Manejo

Criado em: 07 de Abril de 2025 Autor: Raphael Coelho Revisor: Marcela Belleza

Gota é uma doença causada pelo depósito de cristais de urato monossódico, derivado do ácido úrico, nas articulações e tecidos [1]. A doença é mais comum em homens e a prevalência aumenta com o envelhecimento, com um platô aos 80 anos [2]. Esse tópico revisa o diagnóstico e tratamento de gota.

Manifestações clínicas e fatores de risco

Gota pode se manifestar agudamente por inflamação articular (crise de gota) ou cronicamente pelo depósito de cristais em tecidos musculoesqueléticos e rins. A doença deve ser considerada em todo caso de artrite aguda, principalmente nas monoartrites. A primeira articulação metatarsofalangeana é a mais acometida nas crises, manifestação conhecida como podagra (figura 1) [1]. Outros locais frequentes são o mediopé e o tornozelo. Oligo ou poliartrite podem acontecer [3].

Figura 1
Podagra
Podagra

Caracteristicamente, na artrite por gota ocorre eritema e dor intensa que impede o uso da articulação. O paciente não costuma tolerar pressão leve do local. Quando nos pés, os pacientes apresentam dificuldade para deambular. O pico de dor costuma ocorrer nas primeiras 24 horas e os sintomas se resolvem em até 2 semanas [4]. As crises de gota são intercaladas por períodos assintomáticos. Se a gota não for tratada, pode haver aumento da duração e da frequência das crises [5].

Cerca de 15% dos pacientes apresentam tofos gotosos, que são depósitos visíveis de cristais de urato monossódico em tecidos. Esses tofos podem ser encontrados em articulações, cartilagens, tendões, bursas, ossos e tecidos moles (figura 2) [6]. Os tofos não costumam doer, mas podem inflamar agudamente e causar deformidades [7, 8]. Pode haver drenagem de material proveniente do tofo, semelhante a giz ou pasta de dente [8].

Figura 2
Tofos gotosos
Tofos gotosos

Cálculos renais de ácido úrico podem estar presentes em até 25% dos pacientes [9]. Ainda é motivo de debate se a deposição de ácido úrico nos rins pode causar doença renal crônica [10].

O principal fator de risco para gota é o nível elevado de ácido úrico no sangue (hiperuricemia), acima de 7 mg/dL em homens e 5,7 mg/dL em mulheres [11]. Apesar disso, somente metade dos pacientes com ácido úrico > 10 mg/dL desenvolvem gota em 15 anos de acompanhamento [5, 12, 13]. Veja mais sobre hiperuricemia assintomática em "Hiperuricemia Assintomática e Alopurinol"

Critérios diagnósticos: punção articular e escores clínicos

O diagnóstico de gota é confirmado quando há cristais de urato monossódico em articulação, bursa ou tofos. Na artrite, o material coletado para análise é o líquido sinovial, por meio da artrocentese (tabela 1).

Tabela 1
Diagnósticos diferenciais de crise de gota
Diagnósticos diferenciais de crise de gota

A artrocentese com pesquisa de cristais é recomendada em todos os pacientes com suspeita de gota, segundo a diretriz da European League Against Rheumatism (EULAR) [14]. Um dos motivos da artrocentese é diferenciar a gota de artrite séptica. A presença de cristais de urato não exclui outros diagnósticos, como artrite séptica. Caso a suspeita de infecção seja elevada, os antibióticos devem ser mantidos até o fechamento de culturas, considerando as limitações do Gram no líquido sinovial [15].  

Os achados de imagem típicos de gota incluem: 

  • Ultrassonografia: sinal do duplo contorno ou tofos não detectáveis ao exame físico.
  • Tomografia de dupla energia: presença de cristais de urato no tecido conectivo. Também pode diferenciar de cristais de cálcio, encontrados na pseudogota [14, 16].

A radiografia simples identifica lesões que demoram anos para surgir, como erosões ósseas. Em pacientes com 4 anos de duração de doença, a sensibilidade de erosões ósseas é de somente 12%, mas a especificidade é de 96%.

Critérios clínicos podem ser utilizados para esclarecer dúvidas diagnósticas, especialmente quando há dificuldade de acesso a exames específicos. O critério de Janssens tem acurácia acima de 85% e foi validado na atenção primária e em pacientes hospitalizados (tabela 2) [17, 18].

Tabela 2
Critério de diagnóstico clínico de gota (Janssens) em tradução livre
Critério de diagnóstico clínico de gota (Janssens) em tradução livre

O valor de ácido úrico sérico elevado aumenta a probabilidade de gota, mas cerca de 15% dos pacientes com crise de gota apresentaram ácido úrico < 6 mg/d. A dosagem após 4 semanas da crise tem maior sensibilidade para identificar hiperuricemia [4, 5, 19].

Tratamento agudo: medicamentos abortivos e profilaxia anti-inflamatória

O tratamento das crises de gota se divide em medicamentos para controle agudo e profilaxia anti-inflamatória (veja fluxograma 1).

Fluxograma 1
Manejo farmacológico da gota
Manejo farmacológico da gota

Medicamentos abortivos/Controle agudo da crise

Medicamentos de primeira linha para o controle agudo são os anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs), colchicina e corticoides (orais, intravenosos ou intra-articulares). A eficácia é semelhante e a escolha deve se basear nas comorbidades, acesso e experiências prévias do paciente. A combinação pode ser necessária em quadros mais graves, como poliartrites. Em casos de doença renal crônica, a preferência é pelos corticoides [20, 21, 22].

A estratégia de doses mais baixas de colchicina é tão eficaz quanto doses mais altas e reduz efeitos colaterais como diarreia. Uma sugestão é usar 1 mg de colchicina, seguido de 0,5 mg após uma hora, sem repetição de doses no primeiro dia [23].

Entre os medicamentos de primeira linha, corticoides intravenosos podem oferecer alívio de dor mais rápido [5].

Profilaxia anti-inflamatória

A profilaxia anti-inflamatória deve ser feita continuamente por pelo menos 3 a 6 meses, pois períodos mais curtos foram associados a mais crises. O American College of Rheumatology (ACR) recomenda colchicina, AINEs, prednisona ou prednisolona como opções [20]. A EULAR recomenda a colchicina de 0,5 a 1 mg/dia [21]. A profilaxia anti-inflamatória durante o início da terapia para reduzir os níveis de ácido úrico é recomendada pelas diretrizes visando reduzir a frequência de crises nesse período.

Tratamento crônico: controle dos níveis de ácido úrico

A redução da concentração sérica de ácido úrico diminui os tofos e a frequência de crises [20].

Há uma hipótese de que a redução abrupta do ácido úrico sérico possa causar piora da crise de gota. Evidências recentes sugerem que esse fenômeno não deve ser uma preocupação. Dois ensaios clínicos randomizados encontraram que iniciar o medicamento durante a crise não piora a duração ou a gravidade da crise [20, 24, 25].

Indicações de controle de ácido úrico

O ACR indica a terapia para reduzir ácido úrico nos pacientes com qualquer um dos critérios abaixo:

  • Crises recorrentes (duas ou mais ao ano)
  • Presença de tofos gotosos
  • Evidência de lesão radiográfica atribuível à gota (erosão em imagem)

A terapia também é recomendada nos pacientes com alta probabilidade de progredirem o quadro (ácido úrico > 9 mg/dL e doença renal crônica estágio 3 ou mais) ou nefrolitíase por cristais de ácido úrico. A EULAR também recomenda a terapia em adultos com menos de 40 anos ou ácido úrico > 8 mg/dL [21].

Medicamentos para controle de ácido úrico

O medicamento de primeira escolha é o alopurinol, um inibidor da xantina oxidase. É possível utilizar a droga em pacientes com doença renal crônica, mas com a dose ajustada. Deve ser iniciado em baixas doses, 100 mg ao dia ou menos, com ajustes a cada 2 a 4 semanas [26]. Algumas diretrizes orientam a testagem do HLA–B*5801 antes do início do alopurinol em pacientes do sudeste asiático e afrodescendentes pelo maior risco de síndrome de hipersensibilidade ao alopurinol [20, 21].

Os uricosúricos são medicamentos que induzem a perda de ácido úrico pela urina e são alternativas ao alopurinol ou podem ser utilizados em associação. A benzbromarona (Narcaricina ®) é um medicamento dessa classe que está disponível no Brasil. Não está indicado avaliar a excreção de ácido úrico urinário antes de iniciar os medicamentos [20].

O febuxostate, outro inibidor da xantina oxidase, é uma opção recomendada pelas diretrizes, mas que não está disponível no Brasil até o fechamento desta edição [20, 21].

Alvo de uricemia

O alvo de uricemia recomendado por ACR e EULAR é < 6 mg/dL. Alvos mais rígidos podem ser considerados em pacientes com quadros mais graves, por exemplo, com tofos, artropatia crônica e crises frequentes [20, 21].

O ACR recomenda o tratamento sem previsão para sua suspensão [20]. A adesão ao tratamento deve ser monitorada, pois até 20% dos pacientes abandonam o uso em 3 meses [27].

O algoritmo de manejo farmacológico está na figura 3.

Outras recomendações

O controle das comorbidades está indicado, além de ajustes no estilo de vida como reduzir gorduras e alimentos ricos em purina, perder peso e fazer exercício físico. Recomenda-se evitar alimentos com frutose e álcool, principalmente cerveja [28]. Dieta DASH ou dietas ricas em plantas estão associadas a menor risco de gota [29, 30]. Apesar disso, não há evidências suficientes que indiquem que dietas específicas melhoram o controle da gota [5].

É indicada a substituição de hidroclorotiazida e diurético de alça por outros medicamentos [21]. A losartana tem efeito uricosúrico e potencial benefício na gota [20]. Estudos recentes sugerem que os iSGLT2 estão associados à redução de uricemia e a um menor risco de crises de gota [31 - 34].

Uma cartilha para orientação dos pacientes com gota está disponível aqui.

Semaglutida para Transtorno por Uso de Álcool

Criado em: 07 de Abril de 2025 Autor: Nordman Wall Revisor: João Mendes Vasconcelos

Os análogos de GLP-1 são medicações estabelecidas para manejo de diabetes e obesidade [1, 2]. Ensaios pré-clínicos observacionais sugerem que a semaglutida possa ter efeito na redução do consumo de álcool e do desejo de beber (craving). Um estudo publicado em fevereiro de 2025 no Journal of the American Medical Association (JAMA) Psychiatry traz evidências sobre o uso da medicação como estratégia de redução do consumo de álcool [3]. Esse tópico traz o contexto e os resultados do estudo.

A semaglutida e outros análogos de GLP-1 já foram abordados no Guia previamente nas seguintes condições: "Semaglutida para Prevenção Cardiovascular Secundária", "Semaglutida para Insuficiência Cardíaca com Fração de Ejeção Preservada", "Tirzepatida para Insuficiência Cardíaca de Fração de Ejeção Preservada em Pessoas com Obesidade", "Análogos de GLP-1 para Doença Renal Crônica", "Retatrutida para Obesidade" e "Tirzepatida: novo medicamento para obesidade".

Análogos de GLP-1 e uso excessivo de álcool

O uso crescente de análogos de GLP-1 para tratamento de diabetes e obesidade foi acompanhado de relatos sobre a diminuição do uso e do desejo de consumir álcool [4, 5]. A relação entre a medicação e a diminuição de hábitos caracterizados como vícios parece ser explicada pela redução dos mecanismos de recompensa e estabilização dos níveis de dopamina do cérebro em estudos experimentais [6]. Embora o mecanismo de ação não seja completamente esclarecido, o potencial benefício dessa intervenção já está sendo estudado em ensaios clínicos.

Detalhes sobre o diagnóstico e tratamentos de primeira linha dessa condição podem ser encontrados no tópico do Guia TdC "Baclofeno para Transtorno por Uso de Álcool" [1].

Ensaio clínico: semaglutida para transtorno por uso de álcool

Em fevereiro de 2025, foi publicado no JAMA Psychiatry um ensaio clínico de fase 2, duplo-cego, randomizado, que comparou o uso semanal de semaglutida em pacientes com uso excessivo de álcool com o placebo [1]. Os desfechos esperados do estudo eram a diminuição do consumo de álcool relatada pelos participantes e a redução de níveis séricos e expirados de álcool. Quarenta e oito pessoas de 21 a 65 anos participaram do estudo por um período de nove semanas. Doses semanais de semaglutida ou placebo eram aplicadas no subcutâneo e o grupo intervenção utilizou 0,25 mg nas primeiras 4 semanas e 0,5 mg no restante do tempo. O estudo encontrou redução dos níveis de consumo de álcool em gramas e do pico da concentração expirada de álcool com significância estatística. Redução do desejo de beber (craving) e fumar semanalmente também foi observada. As características selecionadas do estudo se encontram na tabela 1.

Tabela 1
Características selecionadas do estudo
Características selecionadas do estudo

Apesar dos resultados que sugerem um efeito positivo no uso da semaglutida, existem algumas observações sobre o estudo:

  • Tamanho amostral pequeno. Em estudos de fase 2, são esperados menos pacientes. No entanto, quanto menor a quantidade de participantes, maior o efeito dos vieses relacionados à avaliação subjetiva dos indivíduos.
  • Significado estatístico não se correlaciona com significado clínico. Alguns estudos de fase 2 podem ser nomeados como estudos de “prova de conceito”. A interpretação desses estudos não diz respeito ao efeito esperado na população, uma vez que o estudo não se propõe a medir a magnitude do efeito.
  • Período curto de testes e dose não usual da intervenção. O período de nove semanas pode ser considerado curto para se ter uma compreensão robusta dos efeitos dessa terapia no padrão de consumo de álcool. Além disso, as doses utilizadas no estudo foram muito inferiores ao comumente observado no manejo para diabetes e obesidade. 

Por ser um ensaio clínico em fase 2, essas limitações são esperadas e devem ser consideradas para a interpretação dos resultados. A sua relevância na literatura está em demonstrar a associação dos análogos em GLP-1 na redução dos hábitos associados ao transtorno do uso de álcool, como sugerido em observações prévias. Os resultados incentivam o desenvolvimento de maiores trabalhos que esclareçam a magnitude desse efeito em demais populações.