Anticoagulantes Orais Diretos (DOACs): Bulário

Criado em: 14 de Abril de 2025 Autor: Marcela Belleza Revisor: Frederico Amorim Marcelino

Os anticoagulantes orais diretos (DOACs) formam um grupo de medicamentos composto por inibidores do fator X ativado - apixabana (Eliquis ®), edoxabana (Lixiana ®) e rivaroxabana (Xarelto ®) - e por um inibidor direto da trombina, a dabigatrana (Pradaxa ®). Este tópico revisa as principais indicações e doses recomendadas dos DOACs para cada situação clínica, além de destacar cuidados no uso e possíveis eventos adversos. 

Anticoagulação com DOACs

A anticoagulação em doses completas (ou anticoagulação plena) visa garantir a eficácia na prevenção e tratamento de eventos tromboembólicos. No tratamento de tromboembolismo venoso (TEV), rivaroxabana e apixabana necessitam de doses elevadas no início da terapia, enquanto dabigatrana e edoxabana requerem um período de anticoagulação com heparina. Na fibrilação atrial (FA), a prescrição inicial não precisa desses cuidados (tabela 1). Doses reduzidas podem ser indicadas em alguns casos de profilaxia ou em pacientes com maior risco de sangramento (veja ‘DOAC para profilaxia de tromboembolismo venoso’, abaixo).

Tabela 1
Anticoagulação com anticoagulantes orais diretos (DOACs)
Anticoagulação com anticoagulantes orais diretos (DOACs)

Os DOACs são considerados medicamentos de primeira escolha em diversos cenários que exigem anticoagulação, especialmente na prevenção de AVC em pacientes com FA e no tratamento de TEV. 

Prevenção de AVC em pacientes com FA 

Pacientes com FA devem ser estratificados quanto ao risco de eventos tromboembólicos. A anticoagulação está indicada para aqueles classificados como de alto risco. Detalhes sobre a estratificação, incluindo o CHA₂DS₂-VASc (ou CHA₂DS₂-VA, segundo a nova diretriz europeia), podem ser encontrados na revisão "Fibrilação Atrial" e no tópico "Atualização sobre a Nova Diretriz de Fibrilação Atrial da ESC 2024".

Os DOACs são a primeira linha de tratamento para a prevenção de AVC na FA, exceto em estenose mitral reumática moderada ou grave e em pacientes com prótese valvar mecânica [1,2]. Nesses casos, a varfarina permanece como terapia padrão. Saiba mais no tópico "Varfarina: Bulário e Quando Preferir em Relação aos DOACs".

Tratamento de eventos tromboembólicos

Os DOACs também estão aprovados para o manejo de TEV, incluindo trombose venosa profunda (TVP) e tromboembolismo pulmonar (TEP) [3-8].

Esta revisão do Guia detalha os passos do diagnóstico e tratamento do "Tromboembolismo Pulmonar". A seleção do anticoagulante no TEP agudo depende da estratificação de risco de mortalidade [9]:

  • Baixo risco: avaliar tratamento ambulatorial com DOAC.
  • Moderado risco: internação e início de anticoagulação parenteral; após estabilização, pode-se avaliar a transição para DOAC. 
  • Alto risco: pacientes com instabilidade hemodinâmica devem ser avaliados para trombólise. A decisão de trombectomia é individualizada. Após estabilização, considera-se a transição para um DOAC. 

Como apixabana e rivaroxabana não precisam de um período de anticoagulação com heparina, são opções para pacientes com TEP de baixo risco tratados sem internação hospitalar. Edoxabana e dabigatrana devem respeitar um período de cinco dias de anticoagulação com heparina, conforme as diretrizes da European Society of Cardiology (ESC) [9]. Em pacientes com TEV que utilizaram heparina e vão de alta com apixabana ou rivaroxabana, a ESC não se posiciona a respeito da necessidade de dose de ataque desses medicamentos e a prática varia entre profissionais [9,10].

Todos os pacientes que tiveram TEP devem receber pelos menos três meses de anticoagulação [9]. Após esse período, a manutenção da terapia é individualizada conforme o risco de recorrência. Alguns estudos mais recentes sugerem que pacientes com alto risco de recorrência de TEV sejam mantidos com dose reduzida de DOAC (apixabana 2,5 mg 12/12 h ou rivaroxabana 10 mg ao dia) [11,12,13]. Essa estratégia foi estudada após pelo menos seis meses de anticoagulação habitual e parece reduzir o risco de sangramento, mantendo a prevenção de TEV. 

DOAC para profilaxia de tromboembolismo venoso

A profilaxia de TEV com DOACs é estudada em três cenários principais:

  • Cirurgias ortopédicas (artroplastia de joelho e quadril).
  • Hospitalizações de pacientes não cirúrgicos.
  • Pacientes com neoplasia ativa.  

Profilaxia de TEV em artroplastia de joelho e quadril

As artroplastias de joelho e quadril são procedimentos de alto risco de TEV. Para profilaxia, utilizam-se DOACs (apixabana, rivaroxabana ou dabigatrana), ácido acetilsalicílico (AAS) ou enoxaparina. A American Society of Hematology (ASH), em 2019, sugere a preferência por DOACs ou AAS para profilaxia após artroplastia de quadril ou joelho, embora com baixo nível de evidência [14].

Não há consenso sobre qual DOAC seria superior. As doses estudadas e mais habituais neste contexto incluem [15]:

  • Apixabana: 2,5 mg de 12/12 h [16,17,18].
  • Rivaroxabana: 10 mg/dia [19-22].
  • Dabigatrana: 150 ou 220 mg/dia [23-26].

A profilaxia pode ser iniciada em até 12 horas após a cirurgia [27] e deve ser mantida por 10 a 14 dias. Em casos de artroplastia de quadril, pode-se prolongar esse período por até 30 a 35 dias de pós-operatório [14,27]. O tópico "Profilaxia de Tromboembolismo após Artroplastia Eletiva" aborda detalhes adicionais.

Profilaxia de TEV em pacientes clínicos internados

Pode haver benefício na profilaxia de pacientes clínicos hospitalizados. A decisão de iniciar anticoagulação profilática requer avaliação individual do risco de trombose. O Guia revisou esse tema no tópico "Profilaxia de Tromboembolismo no Paciente Internado".

Quando indicada, a primeira escolha para profilaxia farmacológica em pacientes clínicos é a enoxaparina [28,29,30]. Os DOACs não são os medicamentos de escolha neste contexto, mas podem ser considerados se houver contraindicação às heparinas, como na trombocitopenia induzida por heparina (HIT - Heparin-induced thrombocytopenia), revisada no tópico "Trombocitopenia Induzida por Heparina" [31-34].

Profilaxia ambulatorial de TEV em pacientes com neoplasia ativa 

Neoplasias são fatores de risco significativos para TEV. A profilaxia farmacológica pode ser:

  • Secundária: pacientes com história prévia de TEV, que devem manter profilaxia enquanto a neoplasia for considerada ativa.
  • Primária: pacientes com neoplasia ativa que nunca tiveram TEV. Estes pacientes devem ser avaliados quanto ao risco de TEV. 

A ASH sugere profilaxia primária com DOAC (apixabana ou rivaroxabana) em pacientes de risco intermediário ou alto pelo escore de Khorana [35-41]. Nesse cenário, foram estudadas as doses de rivaroxabana 10 mg ao dia e apixabana 2,5 mg duas vezes ao dia [42,43]. O tópico "Profilaxia Primária de Trombose no Paciente com Câncer" detalha o assunto.

Outros usos: doença arterial periférica e doença coronariana

Em pacientes com doença coronariana crônica ou doença arterial periférica, a combinação de AAS e rivaroxabana em baixa dose (2,5 mg de 12/12 h) reduziu eventos cardiovasculares maiores (MACE), porém com maior incidência de sangramentos em comparação ao uso isolado de AAS [44,45].

Doença coronariana crônica

As diretrizes de 2023 da American Heart Association (AHA) sugerem rivaroxabana em baixa dose associada à AAS em pacientes de alto risco isquêmico, desde que o risco de sangramento seja moderado a baixo [44,46,47]. Essa recomendação não deve ser aplicada a quem usa dupla antiagregação (exemplo, AAS e clopidogrel). São considerados de alto risco isquêmico os pacientes com doença coronariana multivascular e mais um dos fatores a seguir: diabetes, mais de um infarto prévio, doença arterial periférica, insuficiência cardíaca e doença renal crônica (ClCr < 60). O documento recomenda avaliar o risco de sangramento com calculadoras como PRECISE DAPT, DAPT e PARIS [48,49,50].

Doença arterial periférica

Tabela 2
Estudo COMPASS - rivaroxabana na doença arterial periférica
Estudo COMPASS - rivaroxabana na doença arterial periférica

O tratamento de doença arterial periférica foi mais detalhado na revisão "Doença Arterial Periférica: Diretriz AHA/ACC 2024". A adição de rivaroxabana 2,5 mg de 12/12 h ao AAS pode reduzir eventos cardiovasculares e arteriais periféricos (como amputação e angioplastia), e é sugerida pelas diretrizes AHA/ACC [51]. O documento não especifica quais pacientes devem receber essa combinação, cabendo avaliar os critérios do estudo COMPASS e o risco individual de sangramento (tabela 2) [45,52,53]. Essa diretriz também recomenda a adição de rivaroxabana 2,5 mg de 12/12 h ao AAS para pacientes com revascularização cirúrgica ou endovascular de membro inferior recente, com base nos dados do estudo VOYAGER PAD [53].

Vantagens e cuidados com DOACs

Duas vantagens práticas dos DOACs sobre a varfarina e as heparinas são a administração por via oral e a ausência de necessidade de monitoramento laboratorial de rotina.

Sangramentos são eventos adversos comuns aos anticoagulantes. Sangramento maior deve ser tratado com reversor específico, se disponível. A reversão de apixabana e rivaroxabana é feita com alfa-andexanete e a da dabigatrana com idarucizumabe. Na ausência de agentes específicos, o complexo protrombínico de 4 fatores é uma opção [54]. Detalhes adicionais podem ser vistos em "Manejo de Sangramento Maior em Pacientes em Uso de Anticoagulante Oral".

Tabela 3
Doses sugeridas de anticoagulantes orais diretos para eventos tromboembólicos com base na taxa de filtração glomerular estimada
Doses sugeridas de anticoagulantes orais diretos para eventos tromboembólicos com base na taxa de filtração glomerular estimada

Pacientes com disfunção renal e hepática devem ser avaliados individualmente quanto à necessidade de ajuste de dose. A tabela 3 resume as recomendações para pacientes com doença renal crônica. Na doença hepática, uma sugestão de uso conforme a gravidade é [55]:

  • Child-Pugh A: sem necessidade de ajuste de dose.
  • Child-Pugh B: não usar rivaroxabana; usar apixabana, edoxabana e dabigatrana com cautela.
  • Child-Pugh C: não usar DOACs. 

Pacientes em uso de DOACs devem ser orientados quanto a interações medicamentosas que podem aumentar o risco de eventos adversos. Os principais medicamentos que interagem com os DOACs estão na tabela 4 [56]. A rivaroxabana deve ser administrada junto a uma refeição, para maior biodisponibilidade [57].

Tabela 4
Medicamentos com interação enzimática que podem influenciar níveis séricos dos DOACs (resumido)
Medicamentos com interação enzimática que podem influenciar níveis séricos dos DOACs (resumido)

Os DOACs devem ser evitados em gestantes. Os dados sobre segurança nessa situação são conflitantes, e alguns estudos demonstram aumento do risco de eventos adversos durante a gestação [58, 59, 60]. As diretrizes do American College of Chest Physicians sugerem anticoagulação com heparina de baixo peso molecular nesse cenário [2].

Nova Diretriz de Diagnóstico de Deficiência de Vitamina B12

Criado em: 14 de Abril de 2025 Autor: Luciano Assunção Revisor: Frederico Amorim Marcelino

Uma nova diretriz para diagnóstico e manejo da deficiência de vitamina B12 foi publicada em março de 2024 pelo National Institute for Health and Care Excellence (NICE) do Reino Unido [1]. Este tópico revisa os principais pontos do documento, abordando manifestações clínicas, métodos diagnósticos e causas da deficiência de vitamina B12.

O Guia abordou o tratamento de deficiência de vitamina B12 em "Reposição de Vitamina B12".

Manifestações clínicas e causas

A deficiência de vitamina B12 pode levar a diversas manifestações clínicas, sendo principalmente hematológicas, neurológicas e psiquiátricas. A principal alteração hematológica é a anemia. Classicamente, ocorre uma anemia megaloblástica, um subtipo de anemia macrocítica. Na anemia megaloblástica, defeitos na síntese de DNA resultam em precursores de eritrócitos grandes e disfuncionais, chamados de megaloblastos. A deficiência de vitamina B12 também pode causar leucopenia e plaquetopenia e, em alguns casos, evoluir para pancitopenia [2 - 5].

A ausência de anemia ou macrocitose não exclui a deficiência de vitamina B12. Uma coorte retrospectiva envolvendo 141 pacientes com manifestações neuropsiquiátricas decorrentes dessa carência vitamínica identificou que 28% deles não apresentavam esses achados hematológicos [6, 7]. Esperar que todos os pacientes tenham alterações ao hemograma pode atrasar o diagnóstico.

As manifestações neurológicas da deficiência de vitamina B12 podem afetar diferentes estruturas do sistema nervoso [8]:

  • Nervo periférico: polineuropatia sensitivo-motora, caracterizada por fraqueza, parestesia distal e reflexos reduzidos.
  • Medula espinhal: desmielinização dos tratos posteriores e laterais da medula espinhal, quadro denominado de degeneração combinada subaguda. Os sintomas incluem disestesias simétricas, distúrbios proprioceptivos e paraparesia ou tetraparesia espástica.
  • Encéfalo: declínio cognitivo e disfunção do nervo óptico.

Entre as manifestações psiquiátricas estão depressão, ansiedade e psicose [9].

Tabela 1
Causas de deficiência de vitamina B12
Causas de deficiência de vitamina B12

A deficiência de vitamina B12 pode ocorrer por ingestão inadequada, má absorção por diversas condições gastrointestinais ou aumento das necessidades fisiológicas (tabela 1) [3, 10-12].

Como diagnosticar?

Tabela 2
Sinais e sintomas que sugerem e indicam investigação para deficiência de vitamina B12
Sinais e sintomas que sugerem e indicam investigação para deficiência de vitamina B12

Em março de 2024, o NICE publicou uma diretriz para o diagnóstico e manejo da deficiência de vitamina B12 [1]. O documento recomenda a investigação diagnóstica na presença de ao menos um sinal ou sintoma comum (tabela 2) associado a um fator de risco (tabela 3). Contudo, sugere considerar a investigação com base no julgamento clínico, mesmo na ausência desses fatores.

Tabela 3
Fatores de risco comuns para deficiência de vitamina B12
Fatores de risco comuns para deficiência de vitamina B12

Não há um teste padrão-ouro para o diagnóstico. Os exames iniciais incluem cobalamina (B12 total) ou holotranscobalamina (B12 ativa), com valores de referência e probabilidade diagnóstica conforme a tabela 4 [1]. A holotranscobalamina é pouco utilizada na prática clínica no Brasil devido à sua disponibilidade limitada e ao elevado custo.

Tabela 4
Interpretação dos resultados dos testes de B12 total ou ativa
Interpretação dos resultados dos testes de B12 total ou ativa

Resultados indeterminados devem ser complementados com dosagem sérica de ácido metilmalônico ou, se indisponível, de homocisteína. Ambos os marcadores geralmente se elevam na deficiência de B12. A interpretação deve seguir os intervalos de referência do laboratório utilizado [1]. O fluxograma 1 mostra uma sugestão de como utilizar esses exames. A dosagem de homocisteína é menos específica que do ácido metilmalônico, pois também pode estar elevada na deficiência de folato [13].

Fluxograma 1
Investigação de deficiência de vitamina B12
Investigação de deficiência de vitamina B12

A Choosing Wisely, uma iniciativa global que promove o uso racional de exames e tratamentos médicos, sugere que não deve ser dosado folato de rotina na investigação de anemia ou macrocitose [14], uma vez que a sua deficiência é rara devido à fortificação alimentar, como a que ocorre no Brasil. Além disso, os testes laboratoriais têm utilidade limitada por apresentarem resultados imprecisos [15-16]. Nesses casos, a suplementação empírica é mais eficiente e econômica, garantindo o tratamento imediato sem a necessidade de exames complementares [17].

A deficiência de vitamina B12, por vezes, manifesta-se como anemia megaloblástica, caracterizada por macrocitose, definida por um volume corpuscular médio (VCM) superior a 100 fL [18]. Nem todos os pacientes apresentam esse achado, especialmente em casos leves, na presença de anemia microcítica associada ou quando a fortificação alimentar com folato mascara a anemia megaloblástica sem corrigir a deficiência subjacente de vitamina B12 [19].

Na anemia megaloblástica, embora a medula óssea esteja hiperplásica, os eritroblastos não conseguem se dividir adequadamente. Essa falha na divisão celular resulta na destruição de células ainda dentro da medula (hemólise intramedular), caracterizando o processo de eritropoiese ineficaz. Laboratorialmente, esse fenômeno se manifesta por reticulocitopenia (contagem baixa de reticulócitos), marcadores de hemólise positivos (aumento da desidrogenase lática e da bilirrubina indireta, com redução da haptoglobina) e teste da antiglobulina direta (Coombs direto) negativo, devido à ausência anticorpos ligados às hemácias [3, 4].

A análise do esfregaço de sangue periférico é indicada diante da identificação de citopenia no hemograma [20]. Na deficiência de vitamina B12, pode revelar neutrófilos hipersegmentados, um achado precoce de anemia megaloblástica [3] como demonstrado na figura 1.

Figura 1
Neutrófilo hipersegmentado no esfregaço do sangue periférico
Neutrófilo hipersegmentado no esfregaço do sangue periférico

Os exames de imagem são essenciais na avaliação de complicações neurológicas. Diante da suspeita de degeneração combinada subaguda, indica-se a ressonância magnética de medula espinhal, que pode revelar hiperintensidade simétrica em imagens ponderadas em T2 nas colunas posteriores e/ou laterais. Quando essa alteração é restrita às colunas posteriores, forma-se um padrão característico conhecido como sinal do “V invertido” ou da “orelha de coelho invertida” [21] conforme ilustrado na figura 2.

Figura 2
Sinal do V invertido - acometimento do trato posterior da medula espinhal na degeneração combinada subaguda
Sinal do V invertido - acometimento do trato posterior da medula espinhal na degeneração combinada subaguda

Investigação etiológica

Na deficiência de vitamina B12, recomenda-se a investigação de gastrite autoimune em todos os pacientes sem investigação etiológica prévia e sem histórico de cirurgias que afetam a absorção dessa vitamina [1].

A gastrite autoimune é uma doença inflamatória crônica caracterizada pela produção de autoanticorpos contra o fator intrínseco e/ou células parietais. A deficiência de vitamina B12 pode ocorrer tanto por ação do anticorpo anti-fator intríseco, impedindo a ligação da vitamina com o fator, como por destruição das células parietais (que produzem fator intríseco). Patologicamente, se caracteriza por atrofia gástrica progressiva com preservação do antro. Quando há deficiência de vitamina B12 e anemia, pode ser chamada de anemia perniciosa. Distingue-se de outras formas de gastrite atrófica, como a induzida por Helicobacter pylori, pela sua distribuição específica na mucosa gástrica [22, 23]. Esta condição é frequentemente associada a outras doenças autoimunes, principalmente da tireoide, como tireoidite de Hashimoto e doença de Graves, e é uma manifestação comum da síndrome poliglandular autoimune tipo 3 [24, 25].

A gastrite autoimune está associada a um maior risco de desenvolvimento de tumores neuroendócrinos gástricos e pode também estar relacionada ao aumento do risco de adenocarcinoma gástrico. Em pacientes com essa condição que apresentem novos sintomas gastrointestinais superiores ou piora de sintomas prévios, a realização de endoscopia digestiva alta deve ser considerada [1, 23].

O teste inicial para a investigação é a dosagem do fator intrínseco. Se o teste for negativo e ainda houver suspeita, deve-se considerar uma das seguintes opções [1]:

  • Dosar anticorpo anti-célula parietal gástrica;
  • Dosar níveis de gastrina para investigar hipergastrinemia;
  • Endoscopia digestiva alta com biópsia do corpo gástrico em busca de atrofia gástrica.

É sugerido realizar testes sorológicos para doença celíaca quando a causa da deficiência de vitamina B12 ainda é desconhecida, apesar das investigações adicionais [1]. Veja mais sobre doença celíaca em "Diretriz Americana de Doença Celíaca: Diagnóstico e Tratamento".

Aconselha-se avaliar a presença de ferropenia em pacientes com deficiência de vitamina B12 devido à frequente coexistência dessas condições [22, 26].

Segundo a American Academy of Family Physicians, o rastreamento da deficiência de vitamina B12 pode ser considerado em pacientes com fatores de risco descritos na tabela 3 [10]. Para pacientes em uso de metformina, a Sociedade Brasileira de Diabetes, em sua diretriz de manejo da terapia antidiabética de 2024, recomenda a dosagem de vitamina B12 anualmente após quatro anos de início da medicação [27].

O Guia TdC já abordou a reposição de vitamina B12 em “"Reposição de Vitamina B12".

Infecções Associadas à Lesão por Pressão

Criado em: 14 de Abril de 2025 Autor: Frederico Amorim Marcelino Revisor: Marcela Belleza

Lesão por pressão é uma condição comum em pacientes acamados, podendo ocorrer em 10 a 26% dos pacientes internados em UTI [1]. As lesões por pressão podem infectar e, em lesões mais profundas, pode ocorrer osteomielite. O diagnóstico dessas complicações é difícil e a própria lesão possui características que podem se confundir com infecção. Uma revisão publicada na Clinical Infectious Disease em 2024 abordou a avaliação e o manejo de osteomielite pélvica em pacientes com lesões por pressão [2]. Esse tópico revisa o diagnóstico e o tratamento de infecções associadas a lesões por pressão.

Definição e classificação de lesão por pressão

As lesões por pressão, previamente chamadas de úlceras por pressão, são lesões localizadas na pele e/ou nos tecidos subjacentes, geralmente sobre proeminências ósseas, resultantes de pressão prolongada. As populações mais afetadas são pacientes com lesões neurológicas, em cadeiras de roda ou acamados, pacientes hospitalizados, especialmente em UTI, e idosos acamados [3]. A lesão por pressão pode ser classificada em quatro estágios conforme a profundidade da lesão (figura 1). 

Figura 1
Estágios de lesão por pressão
Estágios de lesão por pressão

A região sacral, ísquio, trocanter, calcâneo e maléolo lateral são locais comuns de lesões por pressão. Lesões em face e região anterior do tórax podem ocorrer em pacientes pronados [4]. Na tabela 1 estão um conjunto de medidas de prevenção de lesões por pressão. 

Tabela 1
Recomendações selecionadas de prevenção de lesões por pressão
Recomendações selecionadas de prevenção de lesões por pressão

Em um estudo que avaliou pacientes com trauma medular, a mediana de tempo para início de lesão por pressão foi de 19 dias para lesão grau I, 31 dias para lesão grau II e 62 dias para lesão grau III. Nesse mesmo estudo, o tempo para cicatrização de lesão foi de 25 dias para grau I, 34 dias para grau II e 39 dias para grau III [5]. Em outro estudo com lesões de grau II, III e IV, a média de tempo para fechamento foi de 6 semanas [6].

As lesões por pressão podem complicar com infecção de pele e partes moles e osteomielite. As duas situações são tratadas nos subtópicos abaixo.

Diagnóstico de infecção de pele e partes moles associada à lesão por pressão

O diagnóstico de infecção de pele e partes moles associada à lesão por pressão é clínico, ou seja, baseado em uma combinação de sinais, sintomas e exames complementares. Toda úlcera crônica é colonizada ou contaminada por bactérias, mas nem todas são infectadas. Os sintomas usados para diagnóstico de infecções de pele, como vermelhidão, calor local e edema, são inespecíficos e podem estar presentes pela própria lesão ou por outras condições inflamatórias. Outros sinais, como dificuldade de cicatrização, alteração de odor e epitelização incompleta, podem sugerir a presença de infecção. Para organizar a avaliação desses sinais, algumas ferramentas foram desenvolvidas para auxiliar no diagnóstico (tabela 2). Exames laboratoriais, como proteína C reativa (PCR) e velocidade de hemossedimentação (VHS), podem identificar inflamação sistêmica, mas são inespecíficos. 

Tabela 2
Formas de avaliar infecção de pele e partes moles em úlceras de pressão NERDS e STONEES
Formas de avaliar infecção de pele e partes moles em úlceras de pressão NERDS e STONEES

A identificação de microrganismos em amostras da lesão não confirma infecção, principalmente pela dificuldade de diferenciar colonização de infecção. Técnicas de cultura quantitativa, que estimam a quantidade de bactérias, são recomendadas por diretrizes, mas são pouco disponíveis. A técnica de cultura convencional (qualitativa) e a semiquantitativa são mais utilizadas na prática.

A cultura de biópsia de tecido profundo é o método mais recomendado para identificação microbiológica, mas ainda assim existe a possibilidade de o agente identificado estar colonizando o tecido sem causar dano. Além disso, é um procedimento invasivo e pode ser pouco disponível em alguns serviços. 

A coleta de cultura de swab da lesão é controversa. Estudos que compararam cultura de biópsia de tecido profundo com swab de lesão mostraram concordância em 22 a 78%, a depender da técnica [7,8,9]. A cultura quantitativa de swab usando a técnica de Levine parece ter maior concordância com a cultura de biópsia. Alguns autores sugerem que, em pacientes que não são candidatos a debridamento, como em infecções superficiais ou em pacientes sem condições clínicas para o procedimento, a cultura quantitativa ou semiquantitativa de swab pode ser considerada [10,11]. Nesses casos, novamente, há dificuldade de discernir colonização de infecção. 

Tomografia computadorizada e ressonância magnética podem ser usadas para avaliar a extensão da infecção e buscar complicações, como abscessos profundos, mas não são específicos para o diagnóstico de infecção. 

Diagnóstico de osteomielite associada à lesão por pressão

A suspeita de osteomielite deve ser feita quando há lesão com exposição óssea (estágio IV). Contudo, a exposição óssea não confirma o diagnóstico de osteomielite. Em estudos com biópsia de tecido, menos de 50% dos pacientes com exposição óssea apresentavam osteomielite confirmada por biópsia [12,13]. Outras situações que podem levantar suspeita de osteomielite são falha de fechamento da ferida apesar de tratamento adequado, sintomas sistêmicos, sepse ou infecção de pele e partes moles recorrente [14,15,16].

O padrão ouro é a realização de exame histológico de amostra óssea para confirmar o diagnóstico [2]. A cultura de tecido ou osso, apesar de sensível, possui como limitação a difícil diferenciação entre colonização e infecção. Habitualmente, limpeza, debridamento e coleta de amostras para cultura e para exame anatomopatológico são feitas no mesmo procedimento.

Tabela 3
Sensibilidade e especificidade de métodos diagnósticos para osteomielite sacral associada a lesão por pressão
Sensibilidade e especificidade de métodos diagnósticos para osteomielite sacral associada a lesão por pressão

A avaliação clínica possui um desempenho ruim. Dentre os exames de imagem, a ressonância magnética é a mais sensível, mas pouco específica, já que a própria lesão estágio IV pode levar a alterações semelhantes às de osteomielite. Uma revisão sistemática avaliou o desempenho dos métodos diagnósticos para osteomielite pélvica associada à lesão por pressão (tabela 3) [15].

Tratamento de infecções associadas à lesão por pressão

O tratamento é composto de duas partes: antimicrobianos e cirurgia. A terapia com antibióticos isoladamente está associada à maior falha de tratamento. Limpeza, debridamento e fechamento com retalho de lesões devem sempre ser considerados [17].

Antimicrobianos

A frequência de microrganismos identificados em cultura de pacientes com infecções associadas à lesão por pressão varia entre diversos estudos. Os mais comumente encontrados são Staphylococcus aureus, Streptococcus spp., enterobactérias e anaeróbios, mas algumas infecções podem ser polimicrobianas [14,18-21].

O tratamento antimicrobiano deve ser guiado por cultura sempre que possível. Preferencialmente, o paciente deve estar sem antibiótico antes da realização da cultura para aumentar as chances de positividade da cultura. O tempo ideal não é definido, variando de 4 a 14 dias sem antibiótico antes da biópsia [2]. O esquema empírico ideal para o tratamento de infecções associadas à lesão por pressão não é consensual e poucas referências sugerem algum antibiótico específico. Possíveis esquemas empíricos e as recomendações de duração do tratamento estão na tabela 4.

Tabela 4
Tratamento antimicrobiano de lesões por pressão
Tratamento antimicrobiano de lesões por pressão

Tratamento cirúrgico

Todos os pacientes com suspeita de infecções associadas à lesão por pressão devem ser avaliados para a possibilidade de debridamento cirúrgico e coleta de material para biópsia e cultura. Nas lesões estágio IV a possibilidade de fechamento com retalho deve ser discutida com a equipe cirúrgica. As duas principais modalidades cirúrgicas nesse cenário são:

  • Cirurgia em um tempo: limpeza e debridamento, coleta de culturas e colocação de retalho no mesmo tempo cirúrgico.
  • Cirurgia em dois tempos: limpeza, debridamento e coleta de culturas no mesmo tempo cirúrgico e colocação de retalho 4 a 6 semanas após o primeiro procedimento.

Não foram encontrados estudos comparando as duas técnicas e a decisão deve ser tomada em conjunto com a equipe cirúrgica. 

Nos pacientes que não são candidatos a fechamento da lesão e que não há previsão de fechamento da lesão, o uso de antibiótico parece oferecer somente melhora transitória e medidas de conforto e qualidade de vida devem ser abordadas [2,17]. A duração de tratamento antimicrobiano é discutível nesse cenário e alguns autores sugerem manutenção de antibiótico por 5 a 14 dias, até resolução de sintomas sistêmicos e locais [22,23]