Consenso de Via Aérea Fisiologicamente Difícil
Pelo menos um evento adverso grave ocorre em 45% das intubações de pacientes críticos [1]. A alta incidência de complicações, mesmo que a intubação seja feita com sucesso na primeira tentativa, levou à caracterização da “via aérea fisiologicamente difícil” [2]. Esse conceito representa pacientes em condições fisiopatológicas que elevam significativamente a probabilidade de eventos adversos, por mais que a anatomia seja “fácil”. Um painel de especialistas publicou recomendações sobre via aérea fisiologicamente difícil seguindo o método Delphi em 2024 [3]. Esse tópico revisa esse documento.
Definição
Via aérea fisiologicamente difícil é aquela em que alterações fisiológicas e fisiopatológicas aumentam o risco de complicações durante a intubação e a transição para a ventilação com pressão positiva. Até hoje, a maioria das diretrizes abordou dificuldades anatômicas da via aérea.
Não existe uma definição consensual e precisa sobre quais condições caracterizam uma via aérea fisiologicamente difícil. As condições fisiopatológicas incluídas no conceito de via aérea fisiologicamente difícil no documento foram hipoxemia, instabilidade hemodinâmica, disfunção do ventrículo direito e elevação da pressão intracraniana. Do ponto de vista de modificações fisiológicas, os autores incluíram a obesidade e a gravidez. Acidose metabólica grave e alto risco de aspiração, apesar de agregarem morbidade ao período peri-intubação, não foram considerados como fatores de via aérea fisiologicamente difícil nessa publicação.
Os pacientes com via aérea fisiologicamente difícil são mais comumente encontrados no departamento de emergência ou na UTI. Além das condições do paciente, fatores logísticos e humanos contribuem com o elevado número de complicações nesses cenários [4].
Preparação da equipe e fatores humanos
O uso de checklists pré-procedimento pode contribuir com a redução de eventos adversos peri-intubação. Os dados não são definitivos, mas os checklists parecem ajudar mais quando incluem intervenções para otimização fisiológica e quando são utilizados por equipes menos experientes [5]. Exemplos de checklists para ter como base podem ser encontrados na internet em livre acesso (exemplos em EMCrit 176 – Updated EMCrit Rapid Sequence Intubation Checklist e Checklist for Intubation & Extubation)
Os autores indicam que a equipe deve ser composta por no mínimo três pessoas, sendo duas capazes de intubar e pelo menos uma delas experiente no manejo da via aérea. O número de complicações parece ser menor quando a equipe é composta por pelo menos duas pessoas capazes de manejar a via aérea [6]. Não há uma definição consensual sobre o que caracteriza um operador de via aérea experiente [7, 8].
As atribuições de cada membro da equipe e os planos em caso de falha devem ser verbalizados antes do procedimento, garantindo um modelo mental compartilhado. Realizar um debriefing após o procedimento pode reforçar atitudes positivas e melhorar o trabalho em equipe. O documento sinaliza que o treinamento dos profissionais envolvidos no processo deve abordar equipamentos, checklists, algoritmos de tratamento e incluir simulação.
Pré-intubação e preparação

Todo paciente que será submetido à intubação orotraqueal deve ser avaliado para possíveis fatores que agreguem risco ao procedimento. As escalas MACOCHA e HYPS são opções sugeridas pelo consenso [9, 10] (tabela 1 e tabela 2). Essas ferramentas consideram fatores além da anatomia, como dificuldades fisiológicas e a experiência de quem vai intubar. A monitorização mínima necessária para a intubação envolve pressão arterial não invasiva, eletrocardiograma contínuo e oximetria de pulso.

Dois estudos que avaliaram a administração de fluidos antes da intubação para prevenir deterioração cardiovascular foram negativos [11, 12]. Mesmo assim, os autores pontuam que essa intervenção pode ser considerada em alguns pacientes, como aqueles que têm sinais de fluido-responsividade. Veja mais em "Fluidos, Fluido-Responsividade e Fluido-Tolerância". O consenso destaca que a hemodinâmica deve ser otimizada antes da intubação, pontuando que vasopressores antes do procedimento podem evitar ou minimizar piora cardiovascular. Dois estudos estão em curso para avaliar essa intervenção. Veja mais em "Instabilidade Hemodinâmica na Intubação Orotraqueal", no subtópico 'Manejo de instabilidade hemodinâmica na IOT'.
Em relação à pré-oxigenação, a ventilação não invasiva é recomendada como método preferencial em pacientes com via aérea fisiologicamente difícil. Veja mais em "Atualização sobre Pré-Oxigenação: o Estudo PREOXI". A oxigenação apneica com cateter nasal de alto fluxo durante o procedimento em pacientes com via aérea fisiologicamente difícil é aceitável, assim como ventilações com dispositivo bolsa-válvula-máscara após a infusão das drogas e antes da laringoscopia. Veja mais em "Pré-oxigenação e Oxigenação Apneica na Intubação". Em pacientes difíceis de pré-oxigenar por comprometimento do estado mental, a intubação em sequência atrasada pode ser considerada [13].
O posicionamento do paciente com a cabeceira elevada a 30º pode melhorar a pré-oxigenação, aumentando o tempo de apneia segura [14, 15]. O posicionamento do paciente durante a laringoscopia é mais controverso, sem definição clara sobre o efeito dessa posição na visualização da glote [16, 17, 18]. Apesar do assunto em aberto, os autores recomendam que a cabeceira elevada a 30º (posição de semi-Fowler) seja adotada durante a laringoscopia de pacientes com via aérea fisiologicamente difícil.
Durante a intubação
Não houve consenso sobre o uso de opioides durante a intubação. Alguns especialistas do painel indicam o uso de maneira cautelosa e titulada, enquanto outros sugerem evitar o uso completamente. Veja mais em “"Fentanil na Intubação de Sequência Rápida".
Quetamina e etomidato são os sedativos de preferência para intubações em vias aéreas fisiologicamente difíceis. Os autores destacam a segurança da quetamina em pacientes com hipertensão intracraniana. A melhor evidência sobre esse assunto vem de duas revisões sistemáticas que não encontraram diferença em desfechos clínicos com a quetamina nesse cenário [19, 20].
Propofol como sedativo isolado de indução anestésica deve ser evitado [21]. A mistura de propofol e quetamina (ketofol) é utilizada por alguns, mas não é padronizada ou aprovada para esse fim e os autores não fazem uma recomendação sobre. Os bloqueadores neuromusculares de escolha são succinilcolina e rocurônio. Veja mais em "Etomidato na Intubação de Sequência Rápida" e "Bloqueador Neuromuscular na Intubação Orotraqueal".
Os autores não se posicionam sobre aplicar ou não a pressão cricoide (manobra de Sellick) para evitar regurgitação, pois a evidência de benefício clínico é controversa. Porém, se a manobra prejudicar a visualização do laringoscopista, a pressão cricoide deve ser retirada.
Idealmente, a videolaringoscopia deve ser empregada em todas as intubações de vias aéreas fisiologicamente difíceis. Não houve consenso quanto à geometria de lâmina recomendada. O consenso recomenda o uso de bougie ou de fio guia de rotina na primeira tentativa de todas as intubações, e não como recurso de resgate. Essas ferramentas podem aumentar a probabilidade de intubação bem sucedida na primeira tentativa. Veja mais em "Videolaringoscopia versus Laringoscopia Direta no Paciente Crítico" e “"Bougie e Via Aérea".
Pós-intubação e áreas de incerteza
Intubação esofágica não reconhecida é um fator de morbimortalidade importante e evitável [1, 22]. Várias diretrizes e sociedades recomendam a capnografia em forma de onda como padrão-ouro para confirmar a intubação traqueal, sendo orientado pelo consenso a visualização de pelo menos sete respirações consistentes com aumento do gás carbônico. Confirmada a intubação traqueal, o posicionamento do tubo na traqueia pode ser avaliado por ausculta, radiografia ou broncoscopia. Apesar do uso crescente de ultrassonografia para essa finalidade, os autores destacam a necessidade de mais evidências sobre essa prática.
O documento destaca áreas com falta de evidências que são prioridades para pesquisa. Entre elas, estão:
- Definir o que é um “operador de via aérea experiente” e a relação entre treinamento, experiência e competências com os desfechos dos pacientes.
- Avaliação crítica do papel dos opioides e das técnicas de intubação acordada.
- Entender se existe algum papel para a pressão cricoide.
- Avaliar o impacto da geometria da lâmina do videolaringoscópio com a probabilidade de intubar na primeira tentativa.
- Delimitar cortes para fatores de risco, como hipoxemia e hipotensão, a partir dos quais os pacientes estão sob alto risco de eventos adversos.