Diretrizes de Anafilaxia: Diagnóstico e Manejo
Anafilaxia é uma reação alérgica grave e de início rápido, que pode ser desencadeada por uma grande variedade de alérgenos. Este tópico revisa o tema com base nas diretrizes americanas de 2023, publicadas no Annals of Allergy, Asthma & Immunology [1].
Fatores desencadeantes e quadro clínico
Anafilaxia é uma síndrome de início agudo decorrente de uma reação alérgica grave que coloca em risco a vida do paciente. É desencadeada por substâncias liberadas por mastócitos e basófilos, mediada pela interação com IgE, na maioria dos casos [1].
Os principais desencadeantes são medicamentos, alimentos e picadas de inseto (tabela 1) [1,2]. Entre os medicamentos, anti-inflamatórios não esteroidais e antibióticos tem destaque e, no contexto perioperatório, os bloqueadores neuromusculares são envolvidos com frequência.

O quadro clínico inclui sintomas cutâneo-mucosos, respiratórios, gastrointestinais e cardiovasculares (tabela 2). Os sintomas mais frequentes são os de pele e mucosas, como prurido, urticária e edemas em boca e face, e os respiratórios, como tosse, dispneia e sibilância. Os mais graves são decorrentes de choque distributivo ou obstrução de vias aéreas [2,3].

Até 10% dos pacientes com anafilaxia não apresentam ou não têm reconhecidos os sintomas cutâneos na apresentação inicial [4]. Em quem já teve episódios prévios, a sequência temporal dos sintomas costuma se repetir [5].
Pacientes idosos, com doença cardiovascular prévia ou que demoram a receber a primeira dose de epinefrina possuem mais risco de anafilaxia fatal [6]. Uso de betabloqueadores e inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA) também são fatores de risco descritos [6,7]. A parada cardiorrespiratória (PCR) pode ocorrer em minutos. Uma série de casos encontrou uma mediana de 5 a 30 minutos entre o contato com o alérgeno e a PCR [8].
A anafilaxia pode ter uma apresentação bifásica em até 5% dos casos. Nessa apresentação, uma recorrência dos sintomas ocorre após a resolução completa do quadro inicial, sem nova exposição, tipicamente em um intervalo menor do que 12 horas (no máximo 24 horas) [9]. Pacientes com quadros mais graves (hipotensão principalmente) e que necessitam de mais de uma dose de epinefrina estão sob maior risco de reação bifásica [9].
Critério diagnóstico
O diagnóstico de anafilaxia é baseado em sinais e sintomas. Em razão da heterogeneidade da apresentação clínica e da variedade de órgãos acometidos, os critérios diagnósticos já foram revisados diversas vezes. Segundo a World Allergy Organization (WAO), o diagnóstico de anafilaxia é altamente provável se um dos critérios abaixo for atingido [2]:
- Início agudo de sintomas cutâneo-mucosos e acometimento respiratório ou hemodinâmico ou gastrointestinal, mesmo sem alérgeno identificado.
- Exposição a alérgeno conhecido ou suspeito e início agudo de hipotensão, broncoespasmo ou obstrução laríngea.
Os critérios diagnósticos da WAO detalhados se encontram na tabela 3. Essa estrutura diagnóstica é uma tentativa de simplificar os critérios elaborados pelo National Institute of Allergy and Infectious Disease (NIAID) e Food Allergy and Anaphylaxis Network (FAAN), que caracteriza o diagnóstico em três cenários possíveis [10]. Os critérios do NIAID/FAAN podem ser encontrados na tabela 4. Os principais diagnósticos diferenciais da anafilaxia são urticária generalizada, angioedema, crise asmática, síncope vasovagal e distúrbios de ansiedade.

Exames séricos como triptase e histamina plasmática podem ser usados para a documentação da anafilaxia. Entretanto, o diagnóstico não depende desses marcadores e a coleta não deve retardar o tratamento inicial [1,11]. A Annals of Allergy, Asthma & Immunology recomenda a coleta de triptase durante a crise e a dosagem basal em casos de anafilaxia recorrente e sem causa definida, principalmente com manifestações cardiovasculares graves [1].
Tratamento: adrenalina, corticoides e anti-histamínicos
O paciente com anafilaxia deve ser atendido em sala de emergência com monitorização contínua. Pacientes hipoxêmicos devem receber oxigenoterapia e a intubação orotraqueal deve ser considerada, principalmente se houver sinais de obstrução de via aérea (edema de orofaringe e língua, rouquidão, estridor ou sensação de sufocamento). A intubação não deve ser postergada, por risco de piora do quadro e inviabilização do procedimento. Nesse caso, a cricotireoidostomia pode ser necessária [2,12].
A adrenalina é o único fármaco com evidências de redução de mortalidade na anafilaxia e está indicada em todos os casos [13].
Não há contraindicações de adrenalina na anafilaxia, considerando que é um quadro ameaçador à vida. O medicamento age rapidamente na reversão do broncoespasmo e do edema e no aumento do débito cardíaco. Em adultos, deve ser administrada via intramuscular, na face lateral da coxa, na dose de 0,5 mg (meia ampola de 1 mg/mL). Pode ser necessário repetir a dose a cada 5 a 15 minutos se os sintomas não melhorarem. Até 36% dos pacientes precisam de uma segunda dose de epinefrina [14].
Caso não haja resposta após duas a três aplicações, deve-se iniciar a infusão contínua de adrenalina (0,1 mcg/kg/min), com aumento progressivo de 0,05 mcg/kg/min a cada 3 minutos, visando perfusão adequada. Uma veia periférica pode ser utilizada temporariamente até a obtenção de um acesso venoso central [3]. Pacientes com hipotensão também devem receber ressuscitação volêmica com 1 a 2 litros de solução cristaloide e infusões adicionais se necessário.
O glucagon é uma opção para pacientes com anafilaxia em uso de betabloqueadores que sejam refratários à adrenalina. O glucagon exerce efeito cronotrópico e inotrópico independente dos receptores β-adrenérgicos [15]. É feito em bolus de 1 a 5 mg endovenoso, seguido de administração contínua de 5 a 15 mcg/min titulando conforme a resposta do paciente [16]. Os principais efeitos colaterais são náuseas e vômitos, principalmente se for infundido de forma rápida. Apesar da opção do glucagon, a adrenalina é o medicamento de primeira linha mesmo naqueles em uso de beta-bloqueadores [17].
Corticoides intravenosos são amplamente utilizados na prática, mas há ausência de evidência de benefício nos sintomas graves da anafilaxia, quando utilizados em conjunto com adrenalina e anti-histamínicos. Por isso, o uso de corticoide não deve atrasar a administração de adrenalina. Uma revisão sistemática de 2020 da Journal of Allergy and Clinical Immunology falhou em demonstrar redução de reação bifásica com corticoides [12,18]. A diretriz americana de 2020 publicada no WAO Journal destaca que o uso rotineiro de corticoides provavelmente não é benéfico e que não há consenso sobre qual utilizar nos casos em que for prescrito [2]. Anti-histamínicos H1 (difenidramina 25 a 50 mg via intravenosa) e H2 (famotidina 20 mg) possuem ação nos sintomas cutâneos e podem ser usados como terapia adjuvante à adrenalina [19]. Veja mais sobre anti-histamínicos e urticária em "Urticária Aguda: Diagnóstico e Manejo".
Tempo de observação
Todos os pacientes com anafilaxia devem ser observados após o tratamento inicial e até os sintomas terem se resolvido completamente. O tempo de observação após a resolução dos sintomas não é consensual e a maior preocupação é a anafilaxia bifásica, com risco de retorno dos sintomas após a alta. Faltam evidências para definir claramente a duração ideal de observação que seria custo-efetiva.
Resultados de metanálise de 2019 sugerem que a observação por 1 hora parece suficiente para descartar 95% dos casos de reação bifásica. A observação durante pelo menos 6 a 12 horas descarta quase todos os casos de reação bifásica [20]. Observar por pelo menos 6 horas após resolução completa dos sintomas é sugerido pela diretriz da American Academy of Allergy, Asthma, and Immunology para pacientes com fatores de risco para anafilaxia grave, como comorbidade cardiovascular, baixa capacidade de autocuidado e falta de acesso à adrenalina ou serviços médicos. A Wilderness Medical Society Clinical Practice Guidelines on Anaphylaxis acrescenta que pacientes com comorbidades significativas, apresentação mais grave ou necessidade de múltiplas doses de adrenalina também devem ser observados por mais de 6 horas após resolução dos sintomas [21]. Se houver hipotensão, essa referência orienta a observação por 12 a 24 horas. Por outro lado, os autores ponderam que em pacientes com apresentações mais leves, resposta rápida à adrenalina e baixo risco de reação bifásica, a observação por 1 hora pode ser suficiente. Protocolos institucionais podem auxiliar a uniformizar as condutas.
Recomendações na alta hospitalar
O paciente deve ser orientado a evitar o desencadeante suspeito. Idealmente, os pacientes que passaram por um episódio de anafilaxia devem receber um plano de ação na alta hospitalar para caso de recorrência. O plano consiste em informações sobre o alérgeno desencadeante, sintomas mais comuns e presentes em eventos prévios e o que fazer em caso de nova crise. O paciente deve ser orientado a ter o plano consigo (por exemplo, na carteira). A Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI) recomenda um plano de ação disponível aqui.
A prescrição de adrenalina autoinjetável é recomendada. Sugere-se que o paciente tenha preferencialmente 2 unidades e que seja orientado na sua utilização e reconhecimento de sinais precocemente. No Brasil, não há produção nacional desse medicamento liberada pela Anvisa, portanto alguns pacientes recorrem a empresas importadoras para ter acesso ao tratamento (veja aqui onde comprar adrenalina autoinjetável). O uso de adrenalina em ampolas ou seringas de insulina é desencorajado pelo risco de contaminação.
Todos os pacientes com anafilaxia devem ser encaminhados ao alergologista para seguimento clínico e investigação de possíveis alérgenos.