Avaliação do Ventrículo Esquerdo pelo Ultrassom (POCUS)
A ultrassonografia à beira do leito (POCUS, sigla derivada do inglês point of care ultrasound) vem em constante expansão, auxiliando na tomada de decisões e no manejo de pacientes na prática clínica. Este tópico revisa a utilização do POCUS na avaliação da função ventricular esquerda.
Fundamentos
O ultrassom cardíaco à beira do leito (POCUS) é mais eficaz na detecção de disfunção ventricular esquerda e elevações de pressões venosas centrais do que o exame físico isoladamente [1]. A ferramenta possibilita o diagnóstico rápido e preciso de insuficiência cardíaca descompensada [2] e uma impressão diagnóstica mais precisa da etiologia de estados de choque circulatório [3].
Os principais usos do POCUS na avaliação ventricular esquerda são:
- Avaliação da função ventricular esquerda
- Identificação de câmaras cardíacas aumentadas
- Diagnóstico diferencial do choque
- Cálculo de débito cardíaco
Diferente da ecocardiografia convencional, o objetivo do POCUS cardíaco não é a descrição anatômica e funcional detalhada, mas sim auxiliar na resposta de dúvidas clínicas específicas [4]. Por exemplo: “Existe disfunção sistólica do ventrículo esquerdo?”.
Para a realização do POCUS cardíaco, o transdutor a ser utilizado é o setorial. Diferente da maioria dos modos ultrassonográficos, o marcador do transdutor (probe marker) tem sua referência à direita da tela e será posicionado durante o exame conforme a visualização cardíaca de interesse (figura 1).

Durante a obtenção das imagens, o paciente preferencialmente deve ser posicionado em decúbito lateral esquerdo, a fim de aproximar o miocárdio da parede torácica. O membro superior esquerdo deve estar elevado para aumentar a distância entre os espaços intercostais. Uma exceção é nas janelas subcostais, nas quais o paciente deve se posicionar em decúbito dorsal, com a musculatura abdominal relaxada, preferencialmente com os joelhos fletidos para facilitar o exame [5].
Cortes ecocardiográficos esquerdos
As diferentes maneiras em que o coração pode ser visualizado pela ultrassonografia são denominadas de cortes ou visões/vistas. O nome de cada corte combina a localização do transdutor no tórax (chamada de janela) e o eixo em que o coração é seccionado ou as estruturas visualizadas.
Os principais cortes ecocardiográficos empregados na avaliação do ventrículo esquerdo são:
- Paraesternal eixo longo
- Paraesternal eixo curto
- Apical quatro câmaras
- Subcostal
Paraesternal eixo longo
O transdutor deve ser colocado na linha paraesternal esquerda, entre o 3º e 4º espaço intercostal, com o marcador do transdutor apontando para o ombro direito na posição entre 10 e 11 horas. A profundidade deve ser ajustada para cerca de 12 a 20 cm.
Neste corte, é possível avaliar as seguintes estruturas anatômicas de interesse:
- Ventrículo direito
- Via de saída do ventrículo esquerdo e valva aórtica
- Ventrículo esquerdo
- Átrio esquerdo e a valva mitral
A figura 2 demonstra o corte paraesternal eixo longo e seus respectivos achados anatômicos.

Paraesternal eixo curto
O transdutor deve ser colocado na linha paraesternal esquerda entre o 3º e 4º espaço intercostal, com o marcador do transdutor apontando para o ombro esquerdo na posição de 2 horas. A profundidade deve ser ajustada para cerca de 10 a 14 cm. Esse corte pode ser acessado a partir do corte paraesternal eixo longo, ao girar o transdutor no sentido horário em um ângulo de 90°.
Neste corte, é possível avaliar as seguintes estruturas anatômicas de interesse:
- Ventrículo direito
- Septo interventricular
- Ventrículo esquerdo e os músculos papilares
A figura 3 demonstra o corte paraesternal eixo curto e seus respectivos achados anatômicos.

Apical quatro câmaras
O transdutor deve ser colocado na linha hemiclavicular esquerda entre o 4º e 5º espaço intercostal, com o marcador do transdutor apontando para 3 horas. A profundidade deve ser ajustada para cerca de 15 a 20 cm. Esse corte também pode ser acessado através da palpação do íctus cardíaco, com a colocação do transdutor imediatamente sobre ele.
Neste corte, é possível avaliar as seguintes estruturas anatômicas de interesse:
- Ventrículo esquerdo
- Ventrículo direito
- Átrio esquerdo
- Átrio direito
A figura 4 demonstra o corte apical quatro câmaras e seus respectivos achados anatômicos.

Subcostal
O transdutor deve ser colocado na linha esternal abaixo do processo xifoide, com o marcador do transdutor apontando para 3 horas. A profundidade deve ser ajustada para cerca de 16 a 25 cm. Uma vantagem deste corte é o posicionamento abdominal, sendo útil em pacientes em que as janelas torácicas não rendem uma boa visualização.
Neste corte, é possível avaliar as seguintes estruturas anatômicas de interesse:
- Lobo esquerdo do fígado
- Ventrículo esquerdo
- Ventrículo direito
- Átrio esquerdo
- Átrio direito
A figura 5 demonstra o corte subcostal quatro câmaras e seus respectivos achados anatômicos.

Subcostal com enfoque na veia cava inferior
O transdutor deve ser colocado entre a linha esternal e a linha paraesternal direita ainda na região subcostal direita. O marcador do transdutor deve apontar para a cabeça do paciente, às 12 horas, e a profundidade deve ser mantida entre 16 a 25 cm. É possível acessar este corte através do corte subcostal ao centralizar o átrio direito na tela e realizar um movimento de rotação de 90º em sentido anti-horário.
Nesta janela é possível avaliar as seguintes estruturas anatômicas de interesse:
- Fígado
- Veia cava inferior
- Veias hepáticas
A figura 6 demonstra o corte subcostal com enfoque na veia cava e seus respectivos achados anatômicos.

O vídeo disponível no link explica a obtenção dos cortes cardíacos ultrassonográficos explicados.
Avaliação básica da função ventricular esquerda
Conhecer a função contrátil do ventrículo esquerdo tem várias aplicações clínicas. Por exemplo, para o diagnóstico diferencial de choque ou na suspeita de insuficiência cardíaca descompensada. A indisponibilidade de um ecocardiograma formal e o tempo necessário para realização do exame completo podem retardar a tomada de decisão, cenário no qual o POCUS cardíaco ganha espaço [4].
Através do POCUS, é possível graduar de forma qualitativa a função ventricular sistólica esquerda estimando a fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) [6]:
- Hiperdinâmico: FEVE > 70%.
- Normal: FEVE > 50%.
- Levemente reduzida: FEVE entre 30 e 50%.
- Muito reduzida: FEVE < 30%.
Estudos demonstram boa correlação da avaliação qualitativa com o exame ecocardiográfico formal [7, 8].
Fração de ejeção e débito cardíaco são conceitos diferentes, frequentemente confundidos. Fração de ejeção é uma medida referente à porcentagem do sangue ejetado pelo ventrículo esquerdo. Débito cardíaco é uma medida mais complexa que envolve o volume sistólico e a frequência cardíaca. Apesar de serem conceitos relacionados, um paciente pode ter uma fração de ejeção preservada e ainda assim um débito cardíaco diminuído.
Cada corte ecocardiográfico, isoladamente, não consegue fornecer todos os dados para uma boa avaliação da função sistólica. Recomenda-se a análise de diferentes cortes e métodos de estimativa da função ventricular para melhor acurácia do exame.
Para a estimativa da função ventricular sistólica esquerda através do POCUS cardíaco, as seguintes avaliações podem ser realizadas [7, 9-11]
- Movimentação do folheto anterior da valva mitral
- Excursão sistólica do plano do anel mitral
- Redução da área intraventricular
- Espessamento das paredes ventriculares
A integral velocidade-tempo da via de saída do ventrículo esquerdo (LVOT-VTI, sigla derivada do inglês) é utilizada para calcular o débito cardíaco de maneira mais precisa. Essa medida é mais complexa que as anteriores, com variação significativa na aferição dos valores e dificuldades na aquisição da imagem. Este tópico é direcionado para as medidas bidimensionais já mencionadas, por serem rápidas de obter, exigirem menor curva de aprendizado e serem suficientes para as decisões iniciais na maioria dos cenários. O LVOT-VTI será detalhado em um tópico futuro sobre a abordagem do choque com POCUS.
Movimentação do folheto anterior da valva mitral
Em pacientes com função ventricular preservada, a diferença de pressão entre o átrio esquerdo e o ventrículo esquerdo na fase inicial da diástole é elevada. Isso promove um rápido enchimento ventricular e, por consequência, um deslocamento do folheto anterior da valva mitral em direção ao septo ventricular, para permitir a passagem do sangue. Quando a função ventricular está reduzida, o gradiente de pressão é menor, resultando em menor fluxo de sangue e menor deslocamento do folheto mitral anterior.
No corte paraesternal eixo longo (figura 2), uma linha imaginária pode ser traçada entre o ápice do ventrículo esquerdo e a região central da válvula mitral. Caso o folheto valvar anterior ultrapasse essa linha e se aproxime do septo interventricular, existe uma forte correlação com uma função ventricular preservada. A figura 7 exemplifica o achado.

A distância entre o folheto anterior da valva mitral e o septo pode ser medida no modo M, chamada de distância E-septal. Uma distância > 7 mm se correlaciona com uma elevada sensibilidade para a detecção de uma fração de ejeção reduzida e um valor > 8,4 mm possui maior especificidade [12, 13, 14]. A figura 8 demonstra a distância E-septal.

Excursão sistólica do plano do anel mitral
A contração ventricular esquerda reduz as dimensões do ventrículo em dois sentidos principais: circunferencial (as paredes laterais se movem para dentro) e longitudinal (a base do coração é “puxada” em direção ao ápice). Dessa maneira, o anel mitral, que está na base, se desloca em direção ao ápice cardíaco. Ao medir esse deslocamento, é possível inferir o componente de encurtamento longitudinal da fração de ejeção.
Quando o ventrículo tem a função preservada, o anel mitral na parede ventricular livre desloca-se > 10 mm anteriormente durante a sístole em relação à sua posição original ao fim da diástole [15]. A figura 9 demonstra a excursão sistólica do plano do anel mitral, também chamada de MAPSE (do inglês, mitral annular plane systolic excursion).

Essa avaliação é melhor realizada na janela apical quatro câmaras e também pode ser quantificada de forma mais precisa através do modo M [16]. A figura 10 exemplifica o achado [17].

Redução da área intraventricular
Durante a sístole ventricular, ocorre a aproximação concêntrica das paredes do ventrículo esquerdo. Como resultado, a área da cavidade ventricular sofre uma redução do seu tamanho de forma proporcional.
Em cenários de contratilidade preservada, espera-se uma redução de pelo menos um terço da área original. Essa avaliação é melhor realizada na janela paraesternal eixo curto, mas também pode ser realizada na apical quatro câmaras. A figura 11 demonstra o achado.

A redução da área intraventricular pode ser quantificada também através do modo M, denominada fração de encurtamento ventricular. O cálculo é feito da seguinte maneira:
Fração de encurtamento ventricular = (DdVE - DsVE) / DdVE X 100%
DdVE: distância interventricular ao fim da diástole./ DsVE: distância interventricular ao fim da sístole.
Valores de fração de encurtamento ventricular > 25% se correlacionam com uma fração de ejeção normal, 15-25% com uma fração de ejeção pouco reduzida e < 15% com uma fração de ejeção muito reduzida. Por ser sujeita a erros na mensuração, a avaliação qualitativa subjetiva é mais recomendada [18].
Espessamento das paredes ventriculares
Durante a contração ventricular, ocorre o espessamento dos ventres musculares. Caso a fração de ejeção seja preservada, é esperado um aumento de pelo menos um terço do tamanho original do músculo na sístole. A figura 12 exemplifica os achados.

O vídeo disponível no link explica a avaliação básica da função ventricular com exemplos ultrassonográficos.