Avaliação do Ventrículo Esquerdo pelo Ultrassom (POCUS)

Criado em: 02 de Junho de 2025 Autor: Amyr Chacar Revisor: Nordman Wall

A ultrassonografia à beira do leito (POCUS, sigla derivada do inglês point of care ultrasound) vem em constante expansão, auxiliando na tomada de decisões e no manejo de pacientes na prática clínica. Este tópico revisa a utilização do POCUS na avaliação da função ventricular esquerda.

Fundamentos

O ultrassom cardíaco à beira do leito (POCUS) é mais eficaz na detecção de disfunção ventricular esquerda e elevações de pressões venosas centrais do que o exame físico isoladamente [1]. A ferramenta possibilita o diagnóstico rápido e preciso de insuficiência cardíaca descompensada [2] e uma impressão diagnóstica mais precisa da etiologia de estados de choque circulatório [3].

Os principais usos do POCUS na avaliação ventricular esquerda são:

  • Avaliação da função ventricular esquerda
  • Identificação de câmaras cardíacas aumentadas
  • Diagnóstico diferencial do choque
  • Cálculo de débito cardíaco

Diferente da ecocardiografia convencional, o objetivo do POCUS cardíaco não é a descrição anatômica e funcional detalhada, mas sim auxiliar na resposta de dúvidas clínicas específicas [4]. Por exemplo: “Existe disfunção sistólica do ventrículo esquerdo?”.

Para a realização do POCUS cardíaco, o transdutor a ser utilizado é o setorial. Diferente da maioria dos modos ultrassonográficos, o marcador do transdutor (probe marker) tem sua referência à direita da tela e será posicionado durante o exame conforme a visualização cardíaca de interesse (figura 1).

Figura 1
Probe setorial e marcador do probe.
Probe setorial e marcador do probe.

Durante a obtenção das imagens, o paciente preferencialmente deve ser posicionado em decúbito lateral esquerdo, a fim de aproximar o miocárdio da parede torácica. O membro superior esquerdo deve estar elevado para aumentar a distância entre os espaços intercostais. Uma exceção é nas janelas subcostais, nas quais o paciente deve se posicionar em decúbito dorsal, com a musculatura abdominal relaxada, preferencialmente com os joelhos fletidos para facilitar o exame [5].

Cortes ecocardiográficos esquerdos

As diferentes maneiras em que o coração pode ser visualizado pela ultrassonografia são denominadas de cortes ou visões/vistas. O nome de cada corte combina a localização do transdutor no tórax (chamada de janela) e o eixo em que o coração é seccionado ou as estruturas visualizadas.

Os principais cortes ecocardiográficos empregados na avaliação do ventrículo esquerdo são: 

  • Paraesternal eixo longo
  • Paraesternal eixo curto
  • Apical quatro câmaras
  • Subcostal

Paraesternal eixo longo

O transdutor deve ser colocado na linha paraesternal esquerda, entre o 3º e 4º espaço intercostal, com o marcador do transdutor apontando para o ombro direito na posição entre 10 e 11 horas. A profundidade deve ser ajustada para cerca de 12 a 20 cm.

Neste corte, é possível avaliar as seguintes estruturas anatômicas de interesse:

  • Ventrículo direito
  • Via de saída do ventrículo esquerdo e valva aórtica
  • Ventrículo esquerdo 
  • Átrio esquerdo e a valva mitral

A figura 2 demonstra o corte paraesternal eixo longo e seus respectivos achados anatômicos.

Figura 2
Corte paraesternal eixo longo e seus respectivos achados anatômicos.
Corte paraesternal eixo longo e seus respectivos achados anatômicos.

Paraesternal eixo curto

O transdutor deve ser colocado na linha paraesternal esquerda entre o 3º e 4º espaço intercostal, com o marcador do transdutor apontando para o ombro esquerdo na posição de 2 horas. A profundidade deve ser ajustada para cerca de 10 a 14 cm. Esse corte pode ser acessado a partir do corte paraesternal eixo longo, ao girar o transdutor no sentido horário em um ângulo de 90°. 

Neste corte, é possível avaliar as seguintes estruturas anatômicas de interesse:

  • Ventrículo direito
  • Septo interventricular
  • Ventrículo esquerdo e os músculos papilares

A figura 3 demonstra o corte paraesternal eixo curto e seus respectivos achados anatômicos.

Figura 3
Corte paraesternal eixo curto e seus respectivos achados anatômicos.
Corte paraesternal eixo curto e seus respectivos achados anatômicos.

Apical quatro câmaras

O transdutor deve ser colocado na linha hemiclavicular esquerda entre o 4º e 5º espaço intercostal, com o marcador do transdutor apontando para 3 horas. A profundidade deve ser ajustada para cerca de 15 a 20 cm. Esse corte também pode ser acessado através da palpação do íctus cardíaco, com a colocação do transdutor imediatamente sobre ele.

Neste corte, é possível avaliar as seguintes estruturas anatômicas de interesse:

  • Ventrículo esquerdo
  • Ventrículo direito
  • Átrio esquerdo
  • Átrio direito

A figura 4 demonstra o corte apical quatro câmaras e seus respectivos achados anatômicos.

Figura 4
Corte apical 4 câmaras e seus respectivos achados anatômicos.
Corte apical 4 câmaras e seus respectivos achados anatômicos.

Subcostal

O transdutor deve ser colocado na linha esternal abaixo do processo xifoide, com o marcador do transdutor apontando para 3 horas. A profundidade deve ser ajustada para cerca de 16 a 25 cm. Uma vantagem deste corte é o posicionamento abdominal, sendo útil em pacientes em que as janelas torácicas não rendem uma boa visualização.

Neste corte, é possível avaliar as seguintes estruturas anatômicas de interesse:

  • Lobo esquerdo do fígado
  • Ventrículo esquerdo
  • Ventrículo direito
  • Átrio esquerdo
  • Átrio direito

A figura 5 demonstra o corte subcostal quatro câmaras e seus respectivos achados anatômicos.

Figura 5
Corte subcostal 4 câmaras (subxifóide) e seus respectivos achados anatômicos.
Corte subcostal 4 câmaras (subxifóide) e seus respectivos achados anatômicos.

Subcostal com enfoque na veia cava inferior

O transdutor deve ser colocado entre a linha esternal e a linha paraesternal direita ainda na região subcostal direita. O marcador do transdutor deve apontar para a cabeça do paciente, às 12 horas, e a profundidade deve ser mantida entre 16 a 25 cm. É possível acessar este corte através do corte subcostal ao centralizar o átrio direito na tela e realizar um movimento de rotação de 90º em sentido anti-horário. 

Nesta janela é possível avaliar as seguintes estruturas anatômicas de interesse:

  • Fígado
  • Veia cava inferior
  • Veias hepáticas

A figura 6 demonstra o corte subcostal com enfoque na veia cava e seus respectivos achados anatômicos.

Figura 6
Corte subcostal com enfoque na veia cava e seus respectivos achados anatômicos.
Corte subcostal com enfoque na veia cava e seus respectivos achados anatômicos.

O vídeo disponível no link explica a obtenção dos cortes cardíacos ultrassonográficos explicados.

Avaliação básica da função ventricular esquerda

Conhecer a função contrátil do ventrículo esquerdo tem várias aplicações clínicas. Por exemplo, para o diagnóstico diferencial de choque ou na suspeita de insuficiência cardíaca descompensada. A indisponibilidade de um ecocardiograma formal e o tempo necessário para realização do exame completo podem retardar a tomada de decisão, cenário no qual o POCUS cardíaco ganha espaço [4].

Através do POCUS, é possível graduar de forma qualitativa a função ventricular sistólica esquerda estimando a fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) [6]:

  • Hiperdinâmico: FEVE > 70%.
  • Normal: FEVE > 50%.
  • Levemente reduzida: FEVE entre 30 e 50%.
  • Muito reduzida: FEVE < 30%.

Estudos demonstram boa correlação da avaliação qualitativa com o exame ecocardiográfico formal [7, 8].

Fração de ejeção e débito cardíaco são conceitos diferentes, frequentemente confundidos. Fração de ejeção é uma medida referente à porcentagem do sangue ejetado pelo ventrículo esquerdo. Débito cardíaco é uma medida mais complexa que envolve o volume sistólico e a frequência cardíaca. Apesar de serem conceitos relacionados, um paciente pode ter uma fração de ejeção preservada e ainda assim um débito cardíaco diminuído.

Cada corte ecocardiográfico, isoladamente, não consegue fornecer todos os dados para uma boa avaliação da função sistólica. Recomenda-se a análise de diferentes cortes e métodos de estimativa da função ventricular para melhor acurácia do exame.

Para a estimativa da função ventricular sistólica esquerda através do POCUS cardíaco, as seguintes avaliações podem ser realizadas [7, 9-11]

  • Movimentação do folheto anterior da valva mitral
  • Excursão sistólica do plano do anel mitral
  • Redução da área intraventricular
  • Espessamento das paredes ventriculares

A integral velocidade-tempo da via de saída do ventrículo esquerdo (LVOT-VTI, sigla derivada do inglês) é utilizada para calcular o débito cardíaco de maneira mais precisa. Essa medida é mais complexa que as anteriores, com variação significativa na aferição dos valores e dificuldades na aquisição da imagem. Este tópico é direcionado para as medidas bidimensionais já mencionadas, por serem rápidas de obter, exigirem menor curva de aprendizado e serem suficientes para as decisões iniciais na maioria dos cenários. O LVOT-VTI será detalhado em um tópico futuro sobre a abordagem do choque com POCUS. 

Movimentação do folheto anterior da valva mitral

Em pacientes com função ventricular preservada, a diferença de pressão entre o átrio esquerdo e o ventrículo esquerdo na fase inicial da diástole é elevada. Isso promove um rápido enchimento ventricular e, por consequência, um deslocamento do folheto anterior da valva mitral em direção ao septo ventricular, para permitir a passagem do sangue. Quando a função ventricular está reduzida, o gradiente de pressão é menor, resultando em menor fluxo de sangue e menor deslocamento do folheto mitral anterior.

No corte paraesternal eixo longo (figura 2), uma linha imaginária pode ser traçada entre o ápice do ventrículo esquerdo e a região central da válvula mitral. Caso o folheto valvar anterior ultrapasse essa linha e se aproxime do septo interventricular, existe uma forte correlação com uma função ventricular preservada. A figura 7 exemplifica o achado.

Figura 7
Corte paraesternal eixo longo demonstrando a movimentação anterior do folheto da mitral.
Corte paraesternal eixo longo demonstrando a movimentação anterior do folheto da mitral.

A distância entre o folheto anterior da valva mitral e o septo pode ser medida no modo M, chamada de distância E-septal. Uma distância > 7 mm se correlaciona com uma elevada sensibilidade para a detecção de uma fração de ejeção reduzida e um valor > 8,4 mm possui maior especificidade [12, 13, 14]. A figura 8 demonstra a distância E-septal.

Figura 8
Cálculo da distância E-septal - corte paraesternal eixo longo.
Cálculo da distância E-septal - corte paraesternal eixo longo.

Excursão sistólica do plano do anel mitral

A contração ventricular esquerda reduz as dimensões do ventrículo em dois sentidos principais: circunferencial (as paredes laterais se movem para dentro) e longitudinal (a base do coração é “puxada” em direção ao ápice). Dessa maneira, o anel mitral, que está na base, se desloca em direção ao ápice cardíaco. Ao medir esse deslocamento, é possível inferir o componente de encurtamento longitudinal da fração de ejeção.

Quando o ventrículo tem a função preservada, o anel mitral na parede ventricular livre desloca-se > 10 mm anteriormente durante a sístole em relação à sua posição original ao fim da diástole [15]. A figura 9 demonstra a excursão sistólica do plano do anel mitral, também chamada de MAPSE (do inglês, mitral annular plane systolic excursion).

Figura 9
Excursão sistólica do plano do anel mitral - corte apical 4 câmaras.
Excursão sistólica do plano do anel mitral - corte apical 4 câmaras.

Essa avaliação é melhor realizada na janela apical quatro câmaras e também pode ser quantificada de forma mais precisa através do modo M [16]. A figura 10 exemplifica o achado [17].

Figura 10
Avaliação da excursão sistólica do ânulo da mitral (MAPSE) no modo M.
Avaliação da excursão sistólica do ânulo da mitral (MAPSE) no modo M.

Redução da área intraventricular

Durante a sístole ventricular, ocorre a aproximação concêntrica das paredes do ventrículo esquerdo. Como resultado, a área da cavidade ventricular sofre uma redução do seu tamanho de forma proporcional.

Em cenários de contratilidade preservada, espera-se uma redução de pelo menos um terço da área original. Essa avaliação é melhor realizada na janela paraesternal eixo curto, mas também pode ser realizada na apical quatro câmaras. A figura 11 demonstra o achado.

Figura 11
Redução da área intraventricular - corte paraesternal eixo curto.
Redução da área intraventricular - corte paraesternal eixo curto.

A redução da área intraventricular pode ser quantificada também através do modo M, denominada fração de encurtamento ventricular. O cálculo é feito da seguinte maneira:

Fração de encurtamento ventricular = (DdVE - DsVE) / DdVE X 100%

DdVE: distância interventricular ao fim da diástole./ DsVE: distância interventricular ao fim da sístole.

Valores de fração de encurtamento ventricular > 25% se correlacionam com uma fração de ejeção normal, 15-25% com uma fração de ejeção pouco reduzida e < 15% com uma fração de ejeção muito reduzida. Por ser sujeita a erros na mensuração, a avaliação qualitativa subjetiva é mais recomendada [18].

Espessamento das paredes ventriculares

Durante a contração ventricular, ocorre o espessamento dos ventres musculares. Caso a fração de ejeção seja preservada, é esperado um aumento de pelo menos um terço do tamanho original do músculo na sístole. A figura 12 exemplifica os achados.

Figura 12
Espessamento das paredes ventriculares - corte paraesternal eixo curto.
Espessamento das paredes ventriculares - corte paraesternal eixo curto.

O vídeo disponível no link explica a avaliação básica da função ventricular com exemplos ultrassonográficos.

Consenso Brasileiro de Neutropenia Febril

Criado em: 02 de Junho de 2025 Autor: Ingrid Fröehner Revisor: Frederico Amorim Marcelino

Neutropenia após quimioterapia citotóxica está associada a aumento de risco para infecções. Essa população pode não manifestar sintomas clássicos e a febre pode ser o único sintoma. O reconhecimento de neutropenia febril como diagnóstico operacional auxilia no início precoce do tratamento. Duas diretrizes recentes foram publicadas sobre o tema, uma pela Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH) [1] e outra pelo Grupo de Trabalho de Doenças Infecciosas (AGIHO) da Sociedade Alemã de Hematologia e Oncologia Médicas (DGHO) [2]. Esse tópico aborda a avaliação e o manejo de neutropenia febril.

Manifestações e fatores de risco

Neutropenia é definida como uma contagem absoluta de neutrófilos < 1.500 células/μL. A neutropenia ser estratificada conforme o valor de leucócitos:

  • Leve: ≥ 1.000 e < 1.500 células/μL.
  • Moderada: ≥ 500 e < 1.000 células/μL.
  • Grave: < 500 células/μL.
  • Agranulocitose: < 200 células/μL. 

A American Association of Oncology (ASCO) e a Infectious Disease Society of America (IDSA) definem neutropenia febril como temperatura oral ≥ 38,3 °C em uma única medida ou ≥ 38,0 °C mantida por mais de uma hora, associada a neutropenia grave (< 500 células/μL) ou previsão de queda para esse valor nas próximas 48 horas [3]. A diretriz da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH) também utiliza o corte de 500 células/μL, mas outras diretrizes, como a da National Comprehensive Cancer Network (NCCN), consideram o corte de 1000 células/μL [4]. A diretriz americana sugere aferição de temperatura oral, mas o documento da ABHH também considera o valor de 38 °C por aferição axilar. 

Em um cenário ideal, ao receber um paciente febril em uso recente de quimioterapia, deveria ser possível consultar uma fonte que listasse, para cada protocolo, (1) a frequência esperada de neutropenia, (2) o intervalo típico entre a infusão e o nadir neutrofílico, e (3) a duração média da neutropenia. Não encontramos esses dados em uma fonte única. O risco de neutropenia varia conforme o esquema (tipo, dose, combinação), fatores do paciente (idade, peso, comorbidades) e medidas de suporte (profilaxia com fator estimulador de colônia, ajustes de dose). As bases de dados disponíveis cobrem partes dessas informações, mas de forma fragmentada e sem padronização. 

Nos tratamentos para neoplasias hematologicas, as neutropenias são mais frequentes, profundas e prolongadas. Já das neoplasias sólidas, há variação significativa conforme o esquema. Alguns exemplos de drogas de maior risco são ciclofosfamida, docetaxel, doxorrubicina, carboplatina e etoposídeo [5]. A diretriz da ASCO utiliza o período de até seis semanas após a administração da quimioterapia para embasar as recomendações da diretriz, sendo esse o intervalo de tempo em que o diagnóstico operacional de neutropenia febril é mais pertinente [3]. Alguns sites disponibilizam outros detalhes sobre eventos adversos de cada esquema.

O objetivo do diagnóstico de neutropenia febril é iniciar rapidamente o tratamento antimicrobiano para pacientes em risco de infecções graves. Como pode haver atraso em exames e momentos de dúvida, algumas situações podem justificar o início precoce do tratamento até uma melhor definição do quadro. Alguns exemplos incluem:

  • Febre em paciente que recebeu quimioterapia recente (por exemplo, há menos de seis semanas), mas ainda sem dosagem de leucócitos disponível. 
  • Febre em paciente que recebeu quimioterapia recente e com neutropenia, mas ainda sem neutropenia moderada ou grave.
  • Sem febre, mas com outros sintomas sugestivos de inflamação, como taquicardia, taquipneia ou hipotensão.

O foco das diretrizes e estudos com neutropenia febril é o paciente em uso de quimioterapia. Existe dúvida sobre a conduta naqueles com neutropenia por outros motivos. As referências não se posicionam de forma clara. Pacientes com neutropenia transitória por infecção viral, como dengue, não parecem ter maior risco infeccioso [6]. Já pacientes com linfoma, anemia aplásica e neutropenias congênitas, por exemplo, parecem ter maior risco infeccioso. Nesse cenário, a avaliação de um especialista pode auxiliar na tomada de decisão.

O termo neutropenia isolada ou incidental é usado por alguns autores para indicar a neutropenia em pacientes sem febre ou sinais de infecção e cuja queixa principal não está relacionada a um possível quadro infeccioso [7].

Investigação inicial

A neutropenia febril é uma emergência médica. Todos os pacientes, independentemente da estratificação de risco, devem receber antibioticoterapia de amplo espectro com cobertura contra Pseudomonas aeruginosa na primeira hora e, idealmente, após a coleta de culturas (tabela 1) [2]. Os esquemas de primeira linha incluem piperacilina-tazobactam e cefepima (tabela 2) [2]. Carbapenêmicos podem ser considerados a depender da microbiologia local e fatores de risco do paciente.

Tabela 1
Esquemas de antibioticoterapia empírico na neutropenia febril.
Esquemas de antibioticoterapia empírico na neutropenia febril.

A avaliação clínica inicial visa identificar um possível foco infeccioso e estratificar a gravidade do paciente. O exame físico deve ser detalhado, com atenção especial em sinais de infecção em pulmões, cavidade oral, mucosas (incluindo região perianal), seios nasais, sítios de punção venosa e locais de inserção de cateter venoso central, incluindo acessos para infusão de quimioterapia (como do tipo Port-a-Cath) [2].

Tabela 2
Comparação de definições de neutropenia febril de baixo e alto risco conforme principais diretrizes e escores preditivos.
Comparação de definições de neutropenia febril de baixo e alto risco conforme principais diretrizes e escores preditivos.

Devem ser coletados dois pares de hemoculturas de locais distintos. Se o paciente tiver algum acesso vascular, recomenda-se a coleta adicional de um par de hemoculturas diretamente do acesso [2]. Na presença de sintomas respiratórios, há preferência pela tomografia computadorizada de tórax, pois a radiografia de tórax apresenta menor sensibilidade em pacientes neutropênicos [2]. A pesquisa de disfunções orgânicas está recomendada e demais exames conforme a suspeita clínica. 

Alguns pacientes com neutropenia febril podem ser tratados ambulatorialmente. Para auxiliar na decisão de internação e tratamento ambulatorial, as diretrizes sugerem que os pacientes sejam estratificados conforme o risco de complicações. Os escores MASCC e CISNE foram criados para avaliar risco de complicações em pacientes com neutropenia febril. O MASCC apresentou sensibilidade de 68% e especificidade de 71% para identificar pacientes de baixo risco em seu estudo original [8]. O CISNE parece identificar melhor pacientes de baixo risco, sendo recomendado de forma completar ao MASCC quando há planejamento de tratamento ambulatorial [9-12]. As diretrizes da IDSA, ASCO, NCCN e AGIHO recomendam o uso de critérios adicionais, além dos escores, para essa decisão. A tabela 2 organiza a avaliação de risco conforme cada diretriz.

Pacientes com leucemia aguda em tratamento de indução ou submetidos a transplante de medula óssea alogênico são considerados de alto risco.  

Fluxograma 1
Tratamento e acompanhamento da neutropenia febril.
Tratamento e acompanhamento da neutropenia febril.

O fluxograma 1 ilustra o manejo completo.

Tratamento conforme estratificação de risco e terapias adicionais

Pacientes de baixo risco

Após a administração da primeira dose de antibiótico de amplo espectro em ambiente hospitalar, é recomendada a observação clínica por pelo menos 4 horas. Na ausência de sinais de deterioração clínica ou novos sintomas, o paciente pode receber alta com esquema antimicrobiano oral, conforme a tabela 1 e o fluxograma 1 [3].

Mesmo em pacientes com baixo risco de complicação, a decisão de tratamento ambulatorial deve considerar questões logísticas, como acesso ao serviço de saúde em até uma hora em caso de novos sintomas ou para reavaliação (tabela 2).

Pacientes que se mantêm febris após 48 a 72 horas do início do antibiótico oral devem ser reavaliados quanto à possibilidade de um novo foco infeccioso ou progressão de uma infecção localizada não percebida anteriormente [3].

A antibioticoterapia empírica oral, nos pacientes sem foco documentado, pode ser suspensa após 3 a 5 dias de recuperação clínica e ausência de febre sem uso de antipiréticos, independentemente da recuperação completa da contagem de neutrófilos [3].

Pacientes de alto risco

Pacientes com neutropenia febril classificados como alto risco devem ser internados para manutenção do tratamento, pesquisa de foco e monitorização de complicações.

Manejo subsequente e terapias adicionais

O tratamento empírico para Staphylococcus aureus resistente à meticilina (MRSA) de rotina (com vancomicina, por exemplo) não é recomendado pelas diretrizes. Os critérios de cada diretriz para a cobertura de MRSA e anaeróbios e para a adição de aminoglicosídeos estão na tabela 3. O tratamento empírico com antifúngicos também não é recomendado de rotina, somente em pacientes com quadro clínico sugestivo de infecção fúngica.

Tabela 3
Uso de antibioticoterapia adicionais na neutropenia febril.
Uso de antibioticoterapia adicionais na neutropenia febril.

O uso de fatores estimuladores de colônias também não é recomendado de rotina pelas diretrizes da AGIHO e da NCCN [13]. Contudo, a NCCN sugere considerar o uso em pacientes em piora clínica apesar do tratamento antimicrobiano.

Febre persistente

Em pacientes com neutropenia febril e febre persistente após 96 horas, sem foco infeccioso evidente e sem piora clínica, a manutenção da febre não justifica a troca do antibiótico empírico inicial. Nesse momento, é necessário incluir investigações adicionais [2].

Em pacientes com febre persistente após 4 a 7 dias de antibiótico empírico, sem foco definido, deve-se investigar infecções fúngicas. A prescrição empírica de antifúngicos nesse cenário é controversa. A diretriz da NCCN recomenda iniciar antifúngico de forma empírica nessa situação (veja tabela 4). A diretriz da AGIHO adota uma abordagem diferente, orientando a prescrição somente após evidências em exames de imagem ou biomarcadores (como galactomanana sérica), desde que esses recursos diagnósticos estejam disponíveis e com resultados em tempo hábil [4, 14]. Veja mais em "Biomarcadores de infecções fúngicas".

Tabela 4
Uso de antifúngicos da neutropenia febril.
Uso de antifúngicos da neutropenia febril.

 Critérios de melhora e suspensão das terapias

Neutropenia febril é um diagnóstico sindrômico criado para acelerar a instituição de antibiótico de amplo espectro antes que se defina a etiologia da febre. Esse rótulo é temporário e, à medida que o paciente evolui e a investigação prossegue, o quadro se define em uma das três situações:

  • Infecção documentada clinicamente. Cenário em que evidências clínicas indicam um foco infeccioso provável (por exemplo, uma consolidação na tomografia de tórax).
  • Infecção documentada microbiologicamente. Situação em que um achado microbiológico indica o foco infeccioso (por exemplo, hemocultura positiva).
  • Febre de origem indeterminada ou febre sem foco definido. Pacientes em que não foi encontrada evidência clínica ou microbiológica de infecção.

Caso um foco infeccioso seja identificado, o paciente deve receber terapia guiada específica para aquele foco e o tempo de tratamento conforme o local da infecção [15].

Segundo a diretriz recente da AGIHO, em pacientes com neutropenia febril que evoluíram para febre de origem indeterminada, a antibioticoterapia empírica pode ser suspensa independentemente da contagem de neutrófilos, contanto que os seguintes critérios sejam atendidos [2]:

  • Pelo menos 72 horas de temperatura < 38,0 °C, sem antipiréticos.
  • Melhora clínica.
  • Capacidade de monitorar a contagem de neutrófilos até a recuperação completa.

Essa abordagem contrasta com diretrizes anteriores que recomendavam manter o tratamento por pelo menos 7 dias após a defervescência. A evidência acumulada de estudos retrospectivos e a de um ensaio clínico randomizado indicou que a suspensão precoce está associada a menor exposição a antibióticos, sem aumento de falhas clínicas ou mortalidade [2, 16].

Cefaleia em Salvas e Outras Cefaleias Trigêmino-Autonômicas

Criado em: 02 de Junho de 2025 Autor: João Urbano Revisor: João Mendes Vasconcelos

As cefaleias trigêmino-autonômicas são um grupo de cefaleias primárias que causam ativação autonômica durante os episódios de dor. A cefaleia mais comum desse grupo é a cefaleia em salvas. Esse tópico revisa o diagnóstico, o tratamento agudo e o tratamento de manutenção da cefaleia em salvas.

O que são e como diferenciar as cefaleias trigêmino-autonômicas

As cefaleias trigêmino-autonômicas são um grupo de cefaleias primárias que apresentam ativação autonômica do nervo trigêmeo durante os episódios de dor. A ativação autonômica pode ser tanto simpática quanto parassimpática. Os principais sinais e sintomas incluem lacrimejamento, hiperemia ocular, congestão nasal, rinorreia e miose pupilar.

Tabela 1
Características clínicas das cefaleias trigêmino-autonômicas.
Características clínicas das cefaleias trigêmino-autonômicas.

Esse grupo de cefaleias é dividido em quatro tipos principais, conforme as características clínicas e a resposta terapêutica (tabela 1):

  • Cefaleia em salvas. 
  • Hemicrania paroxística.
  • Hemicrania contínua.
  • Cefaleia neuralgiforme unilateral com sintomas autonômicos (SUNA, sigla derivada do inglês) e cefaleia neuralgiforme unilateral com edema conjuntival e lacrimejamento (SUNCT, sigla derivada do inglês).

A diferenciação pode ser difícil, mas tem implicações práticas, pois a hemicrania contínua e a hemicrania paroxística são particularmente responsivas à indometacina, um anti-inflamatório não esteroide. Além disso, a decisão pelo tratamento de manutenção também varia conforme o tipo de cefaleia trigêmino-autonômica.

Dentre todas as cefaleias trigêmino-autonômicas, a mais comum é a cefaleia em salvas. Há predomínio no sexo masculino e o primeiro episódio costuma ocorrer entre a segunda e a terceira décadas de vida. Em um estudo com 1604 pacientes com cefaleia em salvas, essa cefaleia foi eleita como a dor mais intensa já experimentada na vida, com nota média de 9,7 na escala analógica da dor, superando outras experiências como parto, nefrolitíase e ferimento por arma de fogo [1].

A localização é unilateral, na região periorbitária, orbitária ou temporal. A maioria dos pacientes apresenta sintomas restritos ao mesmo lado durante as crises e somente 14% apresentam mudança na lateralidade da dor entre períodos de crise [2]. A duração é de 15 a 180 minutos por episódio. Os sintomas autonômicos ocorrem do mesmo lado acometido pela dor e cerca de 70% dos pacientes apresentam todos os achados autonômicos típicos [3]. Inquietação e agitação são frequentes, estão descritas nos critérios diagnósticos (tabela 2) e auxiliam a diferenciar a cefaleia em salvas da enxaqueca, na qual ocorre a preferência do paciente pelo repouso em ambiente silencioso [4, 5].

Tabela 2
Critérios diagnósticos de cefaleia em salvas e sua caracterização.
Critérios diagnósticos de cefaleia em salvas e sua caracterização.

Álcool e nitratos podem desencadear episódios de cefaleia em salvas. O ciclo circadiano também influencia a condição, com cerca de 70% dos episódios de dor ocorrendo no mesmo horário do dia, sendo o horário mais comum entre 2 e 3 horas da manhã [6].

A cefaleia em salvas pode ser categorizada em episódica ou crônica (tabela 2). A episódica é caracterizada por períodos de crise que duram de 7 dias a 2 meses, no qual ocorrem os episódios de dor, seguidos de períodos de remissão de aproximadamente 6 a 12 meses, nos quais não ocorrem episódios de dor. A cefaleia em salvas crônica, por sua vez, é caracterizada por crises de dor sem períodos de remissão ou com períodos de remissão menores do que 3 meses.

Tratamento agudo e de transição da cefaleia em salvas

O tratamento da cefaleia em salvas divide-se em três partes: tratamento agudo, tratamentos de transição e tratamento profilático.

O tratamento agudo tem o objetivo de abortar ou aliviar os ataques de dor. Os tratamentos de primeira linha são o oxigênio a 100% em máscara não-reinalante 12 L/min por pelo menos 15 minutos ou sumatriptano 6 mg via subcutânea. Ambos os tratamentos foram testados em ensaios clínicos com resolução ou alívio da dor em 70 a 80% dos pacientes, com superioridade em relação ao placebo [7, 8].

Tratamentos de segunda linha podem ser utilizados, como o sumatriptano intranasal (pouco disponível no Brasil) ou outros triptanos orais. A maior barreira para um bom resultado com os tratamentos de segunda linha é o tempo para início do efeito, que pode chegar a 30 a 60 minutos, período em que a dor pode cessar espontaneamente. 

Os tratamentos de transição têm o objetivo de evitar novos episódios de dor durante o período de crise. O período de crise pode durar de 7 dias até 2 meses e o paciente pode apresentar repetidas crises de dor nesse intervalo (tabela 2). Os tratamentos de transição podem ser sistêmicos, como corticoides, ou locais, com bloqueio de nervos occipitais. Um dos esquemas estudados recentemente consiste na prescrição de prednisona 100 mg via oral por 5 dias, seguido de redução de 20 mg a cada 3 dias, atingindo uma diminuição de 2,4 episódios de dor por semana. Todos os pacientes tinham diagnóstico de cefaleia em salvas episódica e iniciaram o tratamento profilático de maneira concomitante ao tratamento de transição [9].

No bloqueio de nervos cranianos, há evidência de que a combinação de lidocaína 2% com corticoides, como a dexametasona, pode reduzir a recorrência dos ataques durante o período de crise [10]. Veja mais em "Tratamento de Cefaleia: Bloqueio de Nervos Periféricos".

Tratamento crônico e investigação da cefaleia em salvas

O tratamento profilático tem o objetivo de evitar novas crises a longo prazo. Está indicado para todos os pacientes com cefaleia em salvas e crises de dor incapacitantes. A possibilidade de não realizar tratamento profilático é reservada a pacientes com períodos de dor de curta duração (2 a 3 semanas) e que apresentem boa resposta aos tratamentos de transição. Essa opção deve ser sempre bem explicada ao paciente, pois mesmo com períodos de dor de curta duração, muitos optam pelo tratamento profilático, por se tratar de uma condição extremamente dolorosa e incapacitante.

O verapamil, um bloqueador de canal de cálcio não diidropiridínico, é o tratamento profilático de escolha. Deve-se iniciar 40 mg três vezes ao dia e elevar a dose, conforme tolerância, até 120 mg três vezes ao dia. Recomenda-se realizar um eletrocardiograma prévio ao tratamento e monitorar a frequência cardíaca. O uso é contraindicado em pacientes com insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida, pelo risco de piora do perfil hemodinâmico devido à bradicardia e ao efeito inotrópico negativo [11].

Outra opção para o tratamento profilático da cefaleia em salvas episódica são os anticorpos monoclonais anti-CGRP (peptídeo relacionado ao gene da calcitonina). Essa classe é bem estudada na prevenção de enxaqueca, mas também foi avaliada na cefaleia em salvas, particularmente o galcanezumabe. A dose estudada para cefaleia em salvas é de 300 mg por mês, maior do que a dose recomendada para tratamento de enxaqueca, sendo de 240 mg em dose de ataque e manutenção de 120 mg por mês [12]. Veja mais em "Profilaxia Farmacológica de Enxaqueca".

Outras opções profiláticas de segunda linha incluem lítio e ácido valproico, embora apresentem menor nível de evidência e pior perfil de efeitos adversos.

As opções terapêuticas para cefaleia em salvas episódica, como o galcanezumabe e o verapamil, não são eficazes para tratamento de cefaleia em salvas crônica. Estudos com outros anti-CGRP estão em andamento. Pacientes com cefaleia em salvas crônica, refratária ou que apresentem contraindicação ou intolerância ao tratamento medicamentoso devem ser avaliados por especialistas em dor para manejo de comorbidades e avaliação de terapias específicas, como neuromodulação [13].

Tabela 3
Diagnósticos diferenciais para investigação de causas secundárias de cefaleias trigêmino-autonômicas.
Diagnósticos diferenciais para investigação de causas secundárias de cefaleias trigêmino-autonômicas.

Apesar de ser uma cefaleia primária, a cefaleia em salvas exige diagnóstico diferencial com outras causas de cefaleia ou dores craniofaciais secundárias. Os principais diagnósticos diferenciais para causas secundárias de cefaleia com manifestações autonômicas estão na tabela 3.