Fratura de Quadril

Criado em: 09 de Junho de 2025 Autor: Marcela Belleza Revisor: João Mendes Vasconcelos

A fratura do quadril (ou do colo do fêmur), especialmente em idosos, é um problema de saúde pública, resultando em internações, complicações e altas taxas de morbimortalidade. O manejo eficaz depende de uma atuação multidisciplinar envolvendo clínicos, ortopedistas, fisioterapeutas e equipe de cuidados contínuos. O tratamento rápido da fratura de fêmur pode reduzir complicações como injúria miocárdica [1]. Este tópico revisa os cuidados iniciais e a prevenção de complicações de uma fratura de quadril. 

Aspectos gerais: epidemiologia, fatores de risco e classificação das fraturas

As fraturas de quadril são aquelas que acometem acetábulo, cabeça ou colo do fêmur e a região intertrocantérica (figura 1). Uma possível classificação divide as fraturas de quadril conforme a localização [2]:

  • Fraturas extra-capsulares: inter e subtrocantéricas. 
  • Fraturas intracapsulares: cabeça e colo do fêmur. Fraturas com maior risco de complicação, como necrose avascular e consolidação viciosa. 
Figura 1
Classificação anatômica das fraturas de quadril.
Classificação anatômica das fraturas de quadril.

Mais de 70% das fraturas de quadril acontecem em mulheres e quase metade em pessoas acima de 85 anos [3]. O mecanismo de trauma mais comum é a queda [2, 4]. Outros fatores de risco incluem a redução de massa óssea, sedentarismo e histórico de quedas e outras fraturas [2].

Pessoas com fratura de quadril costumam apresentar dor local (podendo ser irradiada para a região inguinal, glútea ou até o joelho) e incapacidade de deambulação. Ao exame físico, é comum haver rotação externa e encurtamento do membro inferior, especialmente em fraturas com deslocamento. A avaliação inicial deve incluir pesquisa de déficits neurológicos e complicações vasculares, que são pouco comuns à admissão, mas podem ocorrer como complicação da correção cirúrgica [2, 5]. Complicações neurovasculares podem ocorrer por lesão direta durante a cirurgia, tração excessiva por luxação ou retração e compressão por hematoma ou edema no pós-operatório [6].

O diagnóstico é confirmado pela radiografia simples. Pode ser necessária complementação com tomografia ou ressonância magnética, especialmente em caso de fraturas sem desalinhamento (figura 2) [7, 8].

Figura 2
Fratura do colo do fêmur sem desvio - radiografia e tomografia.
Fratura do colo do fêmur sem desvio - radiografia e tomografia.

A mortalidade em um ano após a fratura de quadril é de cerca de 20% [3]. Esse número pode estar relacionado às comorbidades dos pacientes, mas também às complicações da fratura e pós-operatórias (como tromboembolismo venoso, infecção e sangramento). Até metade dos pacientes que sobrevivem a uma fratura de quadril precisam de auxílio para deambulação após a alta e 10 a 20% serão institucionalizados após o evento [2, 4, 10-12].

Decisão cirúrgica e cuidados iniciais

Todo o paciente com fratura de quadril deve ser avaliado por um ortopedista. Na maioria das vezes, será necessária intervenção cirúrgica para correção da fratura. Em geral, as fraturas intra-capsulares (cabeça e colo do fêmur) são tratadas com artroplastia de quadril ou fixação interna. A artroplastia pode ser total (prótese metálica no fêmur com componente acetabular) ou hemiartroplastia (somente prótese metálica no fêmur). A fixação interna envolve a colocação de múltiplos parafusos ou um parafuso único associado a uma placa lateral (sistema conhecido como dynamic hip screw — DHS ou sliding hip screw — SHS). As fraturas intertrocantéricas são tratadas habitualmente com fixação interna, seja com DHS ou com haste intramedular [13].

Como exceção, pacientes acamados, com doenças avançadas ou em contexto de fim de vida, podem ser candidatos à terapia conservadora [14]. Contudo, a cirurgia pode ser considerada no contexto de cuidados paliativos, reduzindo dor e outros sintomas.

A correção da fratura de fêmur é considerada uma cirurgia de urgência. A sociedade americana de ortopedia recomenda a abordagem em 24 a 48 horas, visando melhor controle de dor, complicações e redução do período de hospitalização [10].

A cirurgia precoce (em 24 a 48 horas) reduz o risco de complicações, como mortalidade precoce e intercorrências clínicas durante o internamento (pneumonia, insuficiência cardíaca e tromboembolismo venoso) [2, 14-16]. Um estudo publicado em 2024 sugeriu que pacientes com injúria miocárdica abordados em até 6 horas da fratura tiveram redução de mortalidade quando comparados à cirurgia em 24 horas [1].

No momento da admissão, as condições clínicas devem ser prontamente avaliadas e controladas para não atrasar a cirurgia. A diretriz britânica traz como exemplos: anemia, desidratação, distúrbios hidroeletrolíticos, arritmias, infecções e exacerbações de comorbidades [14]. Veja mais sobre manejo de medicamento no perioperatório em "Anticoagulação no Perioperatório" e "Manejo Medicamentoso no Perioperatório".

O cuidado inicial deve garantir o controle da dor. Apesar dessa recomendação, idosos com déficit cognitivo recebem menos analgesia que indivíduos com cognição preservada [17]. Há benefícios para o uso da analgesia multimodal — quando vários mecanismos de analgesia são utilizados concomitantemente, visando minimizar eventos adversos [10, 14, 18]. Nesse sentido, são opções: 

  • Analgésicos comuns, como dipirona, paracetamol e opioides, na fase aguda [19, 20].
  • Anestesia regional (raquianestesia).
  • Bloqueios, como o bloqueio da fáscia ilíaca ou do nervo femoral. 

Cuidados perioperatórios

Uma complicação aguda da fratura de quadril é o tromboembolismo venoso (TEV). Todos os pacientes com fratura de quadril devem receber profilaxia para TEV [10]. A profilaxia deve ser mantida por 14 a 35 dias após a cirurgia [21]. Os medicamentos mais utilizados são: 

  • Enoxaparina 30 mg de 12/12 horas ou 40 mg 1x/dia, via subcutânea.
  • Rivaroxabana 10 mg via oral 1x/dia.
  • Apixabana 2,5 mg via oral 12/12 horas.
  • AAS 81 a 160 mg via oral 1x/dia.

Veja mais em "Profilaxia de Tromboembolismo após Artroplastia Eletiva".  

A sociedade americana de ortopedia recomenda fortemente a administração de ácido tranexâmico (transamin ®) para pacientes com fratura de quadril, com objetivo de reduzir sangramento relacionado ao procedimento e necessidade de transfusão de hemácias. Ainda há incertezas quanto à dose e via de administração ideais [22, 23, 24].

A profilaxia antimicrobiana previne a ocorrência de infecção articular periprótese. A cefazolina é a opção mais recomendada, na dose de 1 a 2 g via intravenosa de 8/8 horas. Em caso de alergia à cefazolina, vancomicina ou clindamicina podem ser usadas. Os esquemas de profilaxia devem ser mantidos por 24 horas e podem variar conforme o protocolo de cada hospital [2, 25]. Veja mais em "Infecção Articular Periprótese".

O delirium é uma complicação possível no contexto de fratura de quadril e pós-operatório. Nessa situação, fatores predisponentes (pacientes idosos, frágeis, com polifarmácia) e precipitantes coincidem, com destaque para os seguintes precipitantes: 

  • Dor. 
  • Desidratação.
  • Distúrbios hidroeletrolíticos.

O delirium deve ser ativamente pesquisado no paciente internado por fratura de quadril, principalmente se houver histórico de declínio cognitivo prévio [18]. Veja mais em "Delirium".

Prevenção secundária

A história de fratura de quadril é o principal fator de risco para sua recorrência. Todos os pacientes devem ser avaliados quanto ao risco de queda e minimização desse evento [2]. Isso inclui reabilitação física, avaliação de medicamentos que aumentam risco de queda e adaptação de ambiente para maior segurança. 

Uma fratura de quadril desencadeada por trauma de baixa intensidade, como a queda da própria altura, indica que o paciente possui osteoporose e deve receber terapia específica. A adequação da ingesta de cálcio e vitamina D também é recomendada a todos os pacientes ainda na internação [2]. Na ausência de contraindicações, os bisfosfonatos devem ser prescritos a partir de 14 dias da fratura [26]. Veja mais em "Tratamento Farmacológico de Osteoporose Primária".

Diagnóstico de Morte Encefálica

Criado em: 09 de Junho de 2025 Autor: Jonatas Lourival Zanoveli Cunha Revisor: Pedro Rafael Del Santo Magno

O Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a resolução 2.173 em outubro de 2017, atualizando os critérios para diagnóstico de morte encefálica (ME) no Brasil. A norma substituiu a resolução anterior, de 1997, com mudanças na padronização dos testes clínicos, na exigência de exames complementares e na determinação de responsabilidades médicas. Este tópico revisa os principais pontos do diagnóstico de ME, com base na resolução do CFM e nas principais diretrizes internacionais.

Definição de morte encefálica

Morte encefálica (ME) é a cessação definitiva de todas as funções do encéfalo, incluindo córtex e tronco encefálico, caracterizada por [1]:

  • Coma não responsivo.
  • Ausência de reflexos de tronco.
  • Apneia.

O diagnóstico de ME equivale legalmente ao óbito, independente de parada cardíaca ou outros sinais de funções orgânicas. 

O conceito de ME ganhou relevância com o desenvolvimento da ventilação mecânica. Antes, pacientes com lesões cerebrais graves evoluíam rapidamente para a morte por apneia. Na década de 1950, surgiu a descrição do coma dépassé, um estado em que pacientes ventilados mantinham sinais vitais artificiais, mas sem qualquer atividade cerebral [2]. Isso levou à necessidade de critérios objetivos para definir o óbito enquanto ainda havia atividade cardíaca.

Para a definição de ME, é imprescindível a comprovação clínica da cessação irreversível de todas as funções encefálicas, incluindo córtex e tronco cerebral. A irreversibilidade do quadro é determinada tanto pela etiologia conhecida e compatível com dano neurológico irreversível, quanto pela ausência de respostas motoras supraespinhais, de reflexos do tronco encefálico e de respiração espontânea [3].

Em 1995, um estudo prospectivo conduzido em Taiwan avaliou 140 pacientes comatosos sob ventilação mecânica e encontrou que, quando causas reversíveis são rigorosamente excluídas, a ausência de reflexos de tronco e a apneia comprovada em dois exames clínicos são critérios suficientes para o diagnóstico. Todos os 73 pacientes que preencheram esses critérios evoluíram para parada cardíaca, mesmo com ventilação mantida, reforçando a confiabilidade do diagnóstico clínico.

A legislação brasileira exige que sejam cumpridos quatro critérios para o diagnóstico de ME:

  • Identificação de causa conhecida e irreversível para o coma; 
  • Exclusão de fatores confundidores; 
  • Dois exames clínicos e um teste de apneia compatíveis com o diagnóstico;
  • Confirmação por exame complementar. 

Identificação da causa e exclusão de fatores confundidores

O primeiro passo para o diagnóstico de ME é determinar a etiologia. As causas mais comuns de ME no Brasil são trauma crânio-encefálico e AVC isquêmico ou hemorrágico [4, 5]. As principais causas de lesões encefálicas irreversíveis podem ser divididas em intra e extracranianas [1, 6, 7]

  • Intracranianas: trauma crânio encefálico, neoplasias, acidentes vasculares isquêmicos ou hemorrágicos, infecções intracranianas (por exemplo, encefalites).  
  • Extracranianas: encefalopatia hipóxico-isquêmica, intoxicações, causas metabólicas que levem a edema cerebral importante. 

Antes de iniciar os testes para o diagnóstico de ME, deve-se excluir condições clínicas que possam simular esse estado. O paciente deve estar com temperatura corporal central (esofagiana, vesical ou retal) superior a 35,0 °C, saturação arterial de oxigênio acima de 94% e pressão arterial média ≥ 65 mmHg, em adultos. Síndromes como a de encarceramento (locked-in) e a de Guillain-Barré devem ser consideradas no diagnóstico diferencial, por poderem cursar com consciência preservada, mas ausência de resposta motora [8].

Devem ser descartadas causas potencialmente reversíveis de coma, como distúrbios hidroeletrolíticos ou ácido-base graves, hipoglicemia, hiperglicemia, encefalopatia hepática e intoxicações exógenas. Embora a hipernatremia refratária ao tratamento não contraindique o diagnóstico de ME, isso só se aplica quando ela não for a única causa do coma. Um estudo publicado em 2022 avaliou 53 pacientes com diagnóstico de ME e encontrou que 86% desenvolveram hipernatremia cerca de 36 horas após o diagnóstico, enquanto nenhum caso de hiponatremia foi observado. Isto pode ser explicado pela redução do peptídeo natriurético cerebral, responsável pela regulação hidroeletrolítica [9].

[tabela id=1317 index=1]

A conduta quanto ao uso de fármacos sedativos e bloqueadores neuromusculares depende do contexto clínico. Se utilizados em doses terapêuticas habituais e intermitentes, sem disfunção renal ou hepática e sem hipotermia terapêutica, não interferem na avaliação. Porém, se administrados por infusão contínua ou quantidades desconhecidas, é necessário aguardar um intervalo mínimo de quatro a cinco meias-vidas após sua suspensão. A tabela 1 apresenta as meias-vidas e os intervalos mínimos recomendados para os principais sedativos e bloqueadores neuromusculares utilizados em pacientes críticos. Quando houver disfunção hepática ou renal, uso de doses elevadas, intoxicação suspeita ou hipotermia, deve-se aguardar um tempo superior a cinco meias-vidas, ajustado conforme a gravidade do quadro clínico ou confirmado por dosagem sérica abaixo do nível terapêutico. As diretrizes disponíveis não estabelecem um tempo exato padronizado para esses casos, cabendo à equipe assistente avaliar individualmente cada situação, considerando o perfil farmacocinético das drogas, o estado clínico do paciente e a possibilidade de exames laboratoriais complementares.

Para iniciar o protocolo, o paciente deve estar em tratamento e observação em hospital por um período mínimo de seis horas. Quando a causa primária do quadro for encefalopatia hipóxico-isquêmica, esse período de tratamento e observação deverá ser de, no mínimo, 24 horas.

Testes clínicos

Os exames clínicos neurológicos para o diagnóstico de ME devem ser realizados por dois médicos, cada um com experiência mínima de um ano no atendimento a pacientes em coma e que já tenham realizado ou acompanhado pelo menos dez determinações de ME ou realizado um curso de capacitação. Um dos médicos deve ser especialista em: neurologia, neurocirurgia, medicina intensiva, medicina intensiva pediátrica ou medicina de emergência. Em casos de indisponibilidade das especialidades citadas, outro médico devidamente capacitado pode realizar o exame clínico. Ambos não devem fazer parte da equipe de captação ou transplante de órgãos. 

Antes do início dos testes clínicos para determinação de ME, o médico assistente deve comunicar aos familiares ou responsáveis legais a gravidade irreversível do quadro e o significado médico e legal do diagnóstico de ME, que corresponde à morte do paciente. Um profissional de confiança da família pode ser convidado a acompanhar o processo. 

A Comissão Intra-Hospitalar de Transplantes (CIHDOTT), a Organização de Procura de Órgãos (OPO) ou a Central de Transplantes (CET) devem ser notificadas no momento da suspeita de ME e também após o primeiro exame clínico e teste da apneia compatíveis com o diagnóstico.

O exame clínico para diagnóstico de ME visa comprovar a cessação das funções de todo o sistema nervoso central. Isso inclui: 

  • Presença de coma não perceptivo (telencéfalo). 
  • Ausência de reflexos de tronco encefálico (ponte e do mesencéfalo).
  • Ausência de movimentos respiratórios no teste de apneia (bulbo).

A repetição do exame clínico pelo segundo médico deve ocorrer com um intervalo mínimo de uma hora após o primeiro exame. Não é necessário repetir o teste de apneia quando o resultado do primeiro teste for compatível com ME.

Avaliação da presença de coma não perceptivo 

Na ME, há ausência de consciência e de qualquer resposta motora supraespinhal, mesmo a estímulos dolorosos intensos. Movimentos reflexos medulares podem ocorrer, sem invalidar a determinação de ME. A aplicação da escala de coma de Glasgow pode auxiliar na avaliação inicial, sendo que pacientes em coma não perceptivo apresentam escore 3.

Reflexos de tronco encefálico

Os reflexos a serem testados incluem:

  • Fotomotor.
  • Óculo-cefálico.
  • Vestíbulo-calórico.
  • Córneo-palpebral.
  • Reflexo de tosse.

Esses testes, em conjunto, permitem verificar a integridade funcional do mesencéfalo, ponte e bulbo. A metodologia para a realização de cada reflexo encontra-se na tabela 2.

[tabela id=1318 index=2]

Os reflexos fotomotor, vestíbulo-calórico e córneo-palpebral devem ser testados bilateralmente. Na presença de alterações anatômicas ou orgânicas, congênitas ou adquiridas, que impossibilitem a avaliação em ambos os lados, admite-se a realização unilateral. Nessas situações, a limitação deve ser devidamente justificada e registrada no prontuário. A manobra para testar o reflexo óculo-cefálico é contraindicada em casos de suspeita de lesão cervical, desta forma, não é possível seguir com o protocolo de ME nestes pacientes.

A documentação completa dos achados é obrigatória no Termo de Declaração de Morte Encefálica e em prontuário, com horário, nome e CRM do examinador.

Teste de apneia

O teste da apneia avalia a ausência de movimentos respiratórios (drive respiratório) frente ao acúmulo de CO₂. Ele deve ser realizado uma única vez, após o primeiro exame clínico. As etapas para realização do teste são: 

  1. Pré-oxigenar com FiO₂ 100% por pelo menos 10 minutos, com objetivo de atingir PaO₂ ≥ 200 mmHg e PaCO₂ entre 35 e 45 mmHg. 
  2. Instalar o oxímetro e coletar gasometria arterial.
  3. Desconectar o ventilador e fornecer O₂ por cateter intratraqueal ao nível da carina a 6 L/min.
  4. Expor o tórax e abdome do paciente e observar movimentos respiratórios por 8 a 10 minutos.
  5. Colher gasometria arterial ao final do teste.
  6. Reconectar a ventilação mecânica. 

Concluído o teste, deve-se conferir os valores de PaCO₂ na gasometria final. Os resultados possíveis são: 

  • Teste da apneia positivo (compatível com ME): PaCO₂ > 55 mmHg, na ausência de movimentos respiratórios, mesmo se teste interrompido com < 10 minutos.
  • Teste da apneia negativo (não compatível com ME): presença de movimentos respiratórios, independente da PaCO₂. 
  • Teste da apneia inconclusivo: PaCO₂ ≤ 55 mmHg e ausência de movimentos respiratórios (necessário repetir o teste). 

Caso durante o teste de apneia ocorra hipotensão (pressão arterial sistólica < 100 mmHg ou pressão arterial média < 65 mmHg), hipoxemia ou arritmia, o teste deve ser interrompido, realizada gasometria e retomada a ventilação mecânica. Se essa gasometria revelar PaCO₂ menor ou igual a 55 mmHg, o exame é considerado inconclusivo e deve ser repetido após estabilização clínica do paciente. Nessa mesma situação, se o valor de PaCO₂ for superior a 55 mmHg e não tiverem ocorrido movimentos respiratórios, o teste é considerado positivo.

Em pacientes que não toleram a desconexão do ventilador por risco de hipoxemia, o teste de apneia pode ser adaptado. Pode-se utilizar pressão positiva contínua na via aérea (CPAP) de 10 cmH₂O com fluxo de oxigênio de 12 L/min, seja por peça em T conectada ao tubo orotraqueal acoplada a uma válvula de CPAP ou por ventilador que ofereça suporte em modo CPAP com oxigênio suplementar. Caso seja utilizado um ventilador, as ventilações de resgate em caso de apneia (backup) devem ser desligadas. Ventiladores que não garantam fluxo contínuo de oxigênio no modo CPAP não devem ser utilizados, por poderem causar hipoxemia.

Exames complementares para o diagnóstico de morte encefálica

A legislação brasileira exige pelo menos um exame complementar para confirmação da ausência de perfusão sanguínea ou ausência de atividade elétrica ou ausência de atividade metabólica encefálica. Os exames aceitos são: eletroencefalograma (EEG), doppler transcraniano, angiografia cerebral ou cintilografia cerebral com perfusão (SPECT).

[tabela id=1319 index=3]

Detalhes sobre cada um dos exames, incluindo suas vantagens e desvantagens, se encontram na tabela 3

O que fazer após o diagnóstico de morte encefálica?

Após a conclusão dos testes clínicos e dos exames complementares que confirmam o diagnóstico de ME, o passo seguinte é o preenchimento da declaração de óbito (DO), que deve ser realizada pelos médicos que determinaram o diagnóstico de ME ou pelos médicos assistentes. A data e a hora do óbito devem corresponder ao momento em que se finalizou o último procedimento do protocolo de ME. Nos casos em que a causa do óbito for externa, a DO deverá ser emitida pelo médico legista, que deverá receber uma cópia do Termo de Declaração de Morte Encefálica. 

Constatada a ME, o médico está ética e legalmente autorizado a suspender as medidas de suporte terapêutico. A suspensão só deve ocorrer após esclarecimento à família, e deve ser adiada nos casos em que o paciente for potencial doador de órgãos, até a conclusão do processo de captação ou recusa formal à doação. A confirmação do diagnóstico deve ser comunicada obrigatoriamente à CIHDOTT, OPO ou CET. A abordagem familiar para doação de órgãos só deve ocorrer após a formalização do diagnóstico de ME, idealmente por profissional capacitado da equipe de transplantes. 

[tabela id=1320 index=4]

Veja o fluxograma 1 para ver o manejo completo de pacientes com suspeita de morte encefálica.

Prevenção de Demência e Vacina para Zoster

Criado em: 09 de Junho de 2025 Autor: Raphael Coelho Revisor: Marcela Belleza

Estima-se que em torno de 6% da população brasileira com idade acima de 60 anos tenha demência. A expectativa é que o número de casos se multiplique por cinco até 2050. Dois estudos observacionais relacionaram a vacina contra o herpes-zóster à redução do risco de demência em idosos. Este tópico revisa os fatores de risco e proteção de demência e atualiza o tema a partir da análise desses estudos [1, 2].

Fatores de risco e proteção de demência

Identificar fatores de risco modificáveis é fundamental para prevenir e reduzir o número de casos de demência. Alguns motivos tornam o estudo deste tema complexo, como:

  • Fase pré-clínica longa. O processo neuropatológico começa anos ou décadas antes do diagnóstico. Isso encarece os estudos, por necessitarem de acompanhamento prolongado; prejudica a atribuição de causalidade (por exemplo, a atividade física pode reduzir anos antes do diagnóstico formal de demência, como uma consequência de processos neuropatológicos já em curso) e dificulta a definição de uma janela de tempo ideal para prevenção [3].
  • Grupos de pacientes heterogêneos. Há diversos tipos de achados neuropatológicos para as demências. É frequente que indivíduos com um tipo de demência clínica apresentem mais do que um tipo de achado em autópsias [4]. Ao considerar o diagnóstico clínico de demência como uma doença única, perde-se a capacidade de identificação de fatores de risco específicos para cada subtipo de demência. 
  • Interações complexas entre fatores ao longo da vida. Por exemplo, a baixa escolaridade aumenta a probabilidade de piores ocupações, que aumentam exposições potencialmente danosas. Modelar essas interações exige coortes grandes, multicêntricas e ensaios caros e longos.

Há 14 principais fatores de risco modificáveis associados às demências (tabela 1). Estima-se que quase metade dos casos de demência são associados a um desses fatores. Estes dados são provenientes de revisões e metanálises publicadas em relatório de 2024 feito por uma comissão internacional do The Lancet [5].

Tabela 1
Fatores de risco modificáveis para demência.
Fatores de risco modificáveis para demência.

Ensaios clínicos randomizados reforçam uma relação causal quando o tratamento do fator de risco reduz a incidência de demência. Há ensaios clínicos que identificaram redução de demência pelo tratamento de perda auditiva com próteses [6] e de hipertensão [7, 8]. 

Para os outros fatores, a evidência é proveniente de estudos observacionais que não têm o poder de estabelecer relação causal. Portanto, tratar esses fatores não necessariamente resulta em diminuição do risco de demência. Apesar disso, os autores sugerem que pode haver benefício, porque há estudos não randomizados de redução da probabilidade de demência a partir da modificação dos fatores de risco.

O estudo FINGERS foi um ensaio clínico randomizado e controlado que encontrou redução no declínio cognitivo de idosos que receberam uma intervenção em vários domínios. A intervenção envolvia aconselhamento nutricional, programa estruturado de exercícios, treino cognitivo computadorizado e controle de fatores cardiovasculares [9]. O treinamento ou estímulo cognitivo computadorizado em idosos podem ter pequeno efeito positivo que não se mantém a longo prazo, mas as evidências são consideradas de baixa qualidade [10]. 

Durante a confecção do relatório, a comissão do Lancet julgou que naquele momento alguns fatores não apresentavam evidências suficientes para serem incluídos, como: alterações do sono, da dieta, doenças dentárias, infecções sistêmicas, doenças mentais e vacinação.
 

Vacina para Herpes Zoster e prevenção de demência

Dois estudos observacionais publicados em 2025, conduzidos na Austrália [1] e no País de Gales [2], encontraram redução da probabilidade de demência em idosos relacionada à vacinação contra herpes zoster. O principal diferencial desses trabalhos foi o desenho, sendo estudos de quase-experimento, o que permitiu um maior poder para inferir causalidade.

No País de Gales, a vacinação gratuita contra herpes zoster com vírus vivo atenuado (Zostavax®) foi autorizada para idosos nascidos a partir de uma data determinada. Indivíduos na faixa etária indicada puderam se vacinar, enquanto outros não foram incluídos, mesmo sendo somente um pouco mais velhos. Essa política gerou uma mudança abrupta entre populações semelhantes, o que permitiu a utilização de um desenho de estudo observacional chamado quase-experimento utilizando regressão descontínua. Este método consegue comparar grupos diminuindo vieses por fatores confundidores, medidos ou não.

A pesquisa galesa utilizou a análise de prontuários eletrônicos e comparou os grupos de pacientes que nasceram próximos ao ponto de corte da idade para vacinação. A redução na probabilidade de demência foi de 3,5% em 7 anos de acompanhamento no grupo que se vacinou em relação ao controle. 

O estudo australiano com 18 mil pacientes foi publicado logo após e utilizou metodologia semelhante. Avaliou prontuários de pacientes que receberam a Zostavax® pelo programa nacional de imunização do país. O trabalho encontrou resultados na mesma direção da pesquisa galesa, com redução de 1,8% na probabilidade de demência durante o acompanhamento de até 7 anos dos pacientes elegíveis à vacina.

Existe a possibilidade de que pessoas mais engajadas com a própria saúde se vacinem mais e apresentem melhores desfechos por terem hábitos mais saudáveis, em comparação com a população menos engajada e não vacinada. Ambos os trabalhos diminuíram este viés por compararem grupos semelhantes em idade, renda e saúde prévia, além de utilizar métodos estatísticos para verificação da robustez do estudo, simulações de testes placebo, comparações com outros fatores de risco e cortes de idade alternativos.

As principais limitações foram o sub-registro nos bancos de dados, tanto sobre a vacinação quanto para a demência, o que pode mascarar a real magnitude do benefício. As análises se concentraram em octogenários e na vacina de vírus vivo atenuado (Zostavax®), não sendo possível saber se a vacina recombinante (Shingrix®) ou faixas etárias mais jovens apresentariam efeito semelhante.

Um estudo norte-americano de 2024 sobre a vacina recombinante (Shingrix®) explorou a troca súbita entre Zostavax® e Shingrix® em uma coorte de pacientes. Foi encontrada redução de tempo livre de demência em seis anos, mas, por depender de períodos diferentes em vez de um corte etário rígido, oferece evidência metodologicamente inferior aos trabalhos australiano e galês [11]. 

A explicação fisiopatológica dos achados é especulativa. Existem hipóteses de que a vacina poderia reduzir algum tipo de inflamação crônica induzida pelo vírus latente ou modular a imunidade de forma protetora.

A força desses trabalhos não é a mesma de ensaios clínicos randomizados multicêntricos e controlados por placebo. Os achados não devem ser utilizados como prova de relação causal entre vacinação e redução de incidência de demência. Entretanto, é possível que não seja viável ou ético fazer estudos grandes e com placebo e que evidências com essa metodologia sejam suficientes para motivar a prescrição das vacinas também com esse objetivo.

A indicação primária de vacina para herpes zoster continua sendo prevenir a doença e suas complicações. Veja mais em "Herpes Zoster: Diagnóstico, Tratamento e Prevenção".